Sermão em pedra para todos os povos
A Igreja da Madre de Deus, localizada no centro histórico de Macau, é um dos monumentos mais emblemáticos da presença portuguesa na região e um testemunho da rica história cultural e religiosa que marcou o território. A igreja, juntamente com as ruínas do antigo Colégio de São Paulo, forma um conjunto histórico de grande relevância, não só para Macau, mas também para a compreensão do encontro entre as culturas ocidental e oriental. É o “ícone” da cidade, dir-se-á.
A Igreja da Madre de Deus foi construída no Século XVI, a partir de 1565, mais o colégio professo de São Paulo e residência anexos, da Companhia de Jesus. Em 1595 deflagrou um incêndio que destruiu o conjunto: o colégio e a residência foram logo reconstruídos, mas a igreja só o foi a partir de 1602. O Colégio de São Paulo foi a primeira instituição de ensino superior de tipo ocidental na Ásia. Fundado em 1594, rapidamente se tornou um centro de formação religiosa, científica e cultural, atraindo estudantes não só de Macau, mas também de outras partes da Ásia, incluindo a China continental e o Japão.
Os jesuítas, uma ordem religiosa católica conhecida pelo seu trabalho missionário e educativo, desempenharam um papel crucial na disseminação do Cristianismo e do conhecimento ocidental na Ásia. O Colégio de São Paulo foi um dos seus maiores legados, funcionando como um centro de aprendizagem onde se estudava Teologia, Filosofia, Matemática, Astronomia e Línguas.
A igreja, dedicada à Madre de Deus (Nossa Senhora), era um edifício imponente, construído em estilo barroco, com uma fachada ricamente decorada com elementos simbólicos e iconográficos que reflectiam a fé católica e a missão evangelizadora dos jesuítas. A igreja, excepto a fachada em pedra, era construída em taipa e madeira. Fontes do Século XVII descrevem-na ricamente decorada e mobilada. Naquela altura, ela era a maior igreja católica do Extremo Oriente. Pertenceu à Companhia até 1762, quando esta Ordem foi extinta. Em 1835, um novo incêndio destruiu grande parte do complexo, restando apenas a fachada da igreja, que hoje é conhecida como Ruínas de São Paulo.
A grandiosa e elegante fachada de granito foi meticulosamente trabalhada, ao longo de muitos anos, por cristãos japoneses exilados e artistas locais, sob a orientação do jesuíta italiano Carlo Spínola. Com 23 metros de largura e 25,5 metros de altura, a fachada foi concebida com base na simbologia da ascensão divina, estando dividida em cinco níveis horizontais, coroados por um frontão triangular. Cada um dos níveis representa uma etapa específica da caminhada espiritual ascendente do crente rumo ao Paraíso, o destino final da sua peregrinação na Terra. O Paraíso é o prémio para os que pela sua fé venceram o demónio em vida e alcançaram a santidade. Por isso, o frontão, que corresponde ao quinto e último nível, simboliza a Santíssima Trindade, que habita no Paraíso.
A fachada, de uma imponência e magnificência ímpares, combina elementos dos estilos maneirista e barroco, mas também integra características das ordens jónica, coríntia e compósita. É ricamente ornamentada com uma profusão de imagens bíblicas, representações mitológicas, símbolos do Paraíso e do Mistério Pascal, além de inscrições religiosas em Chinês. Destacam-se ainda motivos como crisântemos japoneses, uma caravela portuguesa, leões chineses, esculturas e estátuas de bronze que retratam os fundadores da Companhia de Jesus – Santo Inácio de Loyola, São Francisco de Borja, São Francisco Xavier e São Luís Gonzaga –, bem como imagens da Virgem Maria, do Menino Jesus, de anjos e de demónios. As representações da Virgem Maria ocupam uma posição central na fachada, o que é particularmente significativo, uma vez que esta pertence a uma igreja dedicada à Madre de Deus (ou Mãe de Deus, ou seja, a Virgem Maria).
A fachada é um reflexo do estilo arquitectónico característico dos jesuítas, mas também de uma fusão única de influências globais, regionais e locais, que incorpora elementos de origem europeia, chinesa, japonesa e de outras partes da Ásia. É considerada um verdadeiro “sermão em pedra” e uma síntese doutrinal, pois transmite, através das suas imagens e das inscrições em Chinês e Latim, os principais ensinamentos da Doutrina Católica e os pilares da Reforma Católica. Entre os temas abordados, destacam-se a transubstanciação, o papel especial da Virgem Maria na salvação, a graça divina, a importância da missa, a justificação, a veneração dos santos, entre outros.
A localização da Igreja da Madre de Deus e do Colégio de São Paulo, no coração de Macau, não foi por acaso. Macau era, na época, um importante ponto de encontro entre o Oriente e o Ocidente, servindo como porta de entrada para o comércio, a religião e a cultura. A presença dos jesuítas e a construção do colégio e da igreja revelam a estratégia de evangelização e de diálogo cultural que caracterizou a missão da Companhia de Jesus na Ásia. Para os chineses, o colégio e a igreja representavam uma janela para o mundo ocidental. Muitos chineses converteram-se ao Cristianismo e estudaram no colégio, onde tiveram contacto com o conhecimento científico e filosófico europeu. Ao mesmo tempo, os jesuítas, como Matteo Ricci (Lì Mǎdòu, 利瑪竇), foram dos primeiros a estudar e a valorizar a cultura e a língua chinesas, promovendo um intercâmbio cultural que deixou marcas profundas em ambas as civilizações.
A Igreja da Madre de Deus e as Ruínas de São Paulo são conhecidas em chinês como 大三巴牌坊 (Dà Sān Bā Pái Fāng). A denominação corrente 大三巴 (Dà Sān Bā) é uma transliteração fonética do nome “São Paulo” em Cantonense. O termo 牌坊 (Pái Fāng) refere-se a um arco ou portal tradicional chinês, o que evidencia a forma como a fachada da igreja é percebida na cultura local – como sendo um monumento imponente e simbólico, semelhante a um arco triunfal.
Em 2005, as Ruínas de São Paulo foram incluídas na lista do Património Mundial da UNESCO, como parte do Centro Histórico de Macau, reconhecendo aquela entidade o seu valor universal excepcional. Junto às ruínas, encontra-se o Museu de Arte Sacra, que alberga uma colecção de objetos religiosos, incluindo pinturas, esculturas, paramentos litúrgicos e outras peças. O museu oferece uma visão sobre o papel da Igreja Católica na região e a sua interacção com a cultura chinesa.
Vítor Teixeira
Universidade Fernando Pessoa