Reis de uma vida.
Para parte significativa da comunidade macaense, o Natal é ainda a festa da família por excelência. A Missa do Galo é uma tradição incontornável e pratos como a sopa de lacassá ou o tacho não podem faltar na mesa natalícia. Esta quadra, no entanto, é também solidariedade e a APOMAC não esqueceu os que não têm como fugir ao estigma de um Natal solitário.
Os gigantes também choram. Acobertados por uma estatura de colosso, os 89 anos de Fernando não parecem nem tão vastos, nem tão provectos: o Natal, assegura num português abonitado pela candura do Oriente, é ainda celebrado em sua casa com um preceito antigo, com a reverência e o respeito com que a vivência da quadra lhe foi incutida pelo pai.
A Missa do Galo, que anuncia o nascimento do Menino numa humilde e despojada manjedoura de Belém, está no centro das celebrações natalícias para a família Nascimento, não fosse Fernando católico devoto e cumpridor. «Continuo a frequentar a Igreja. Eu e a minha mulher vamos à Sé todos as tardes, por volta das cinco e meia. Vamos rezar o terço, porque nessa altura o Santíssimo está exposto. Depois do terço há a missa, às seis», explica, antes de um frágil véu de tristeza se lhe abater sobre a voz.
Os olhos vivos, plantados num rosto antigo, esmorecem, turvam-se e uma lágrima fugidia despedaça-se sobre os atoalhados, a mesa enfeitada com adereços natalícios. Pela primeira vez em 65 anos de vida comum, Fernando não sabe se terá a esposa ao lado na missa da meia-noite. A 18 de Novembro, no mesmo dia em que a jovem piloto alemã Sophia Flörsch iludiu a morte na Curva do Lisboa, Rosita Eulália Nascimento caiu em casa e fracturou uma perna. «Teve que se operada e está internada desde então. Ela tem 90 anos. Eu tenho 89. Fizemos no dia 8 de Novembro 65 anos de casados», ilustra o ancião, com a voz estilhaçada pela melancolia.
Com Rosita debilitada, o Natal, sustenta Fernando, perde parte do seu brilho, mas continua a ser – ainda assim ou, porventura, mais do que nunca – a melhor das ocasiões para celebrar a família. «Antigamente, fazíamos a ceia à maneira de Macau. A família toda levava uma coisinha qualquer para colocar na mesa e a família juntava-se. O dia servia para isso», lembra o patriarca do clã Nascimento. «Agora, a maior parte das vezes, para evitar o trabalho que dá fazer a ceia em casa, os meus filhos reservam uma mesa num restaurante chinês. A família continua a comparecer toda e os que podem levam uma prenda para os mais pequenos», complementa.
Uma família alargada
A família é também um aspecto central da vivência do Natal para Rafael Afonso, mas é, ao mesmo tempo, a razão pela qual deixou de assinalar a quadra. Com os filhos espalhados pelo mundo e a mulher confinada a um lar, para Rafael, de 75 anos, a quadra pouco mais é que uma mágoa. «É a festa da família, sim. No meu caso, como a família está desmembrada e está cada um em seu canto, é mais difícil», assume. «Eu vivo sozinho. A mulher está no asilo, está separada. Os filhos estão ausentes: um está em Inglaterra, o outro está em Portugal. É diferente. Hoje em dia eu vivo isolado e, como tal, o Natal não significa nada. É mais um dia», desabafa, com os olhos humedecidos espelhando tristeza.
Rafael não despreza a quadra, mas garante que a data nunca lhe motivou grande entusiasmo, até porque a vida, insinua, nunca o brindou com grande compaixão. No Alentejo, onde nasceu e cresceu, celebrar o Natal era quase um privilégio. «A vida era muito árdua na região onde vivi a minha infância. No Alentejo, no Sul, o Natal não se celebrava porque a maior parte das famílias não tinham possibilidades», recorda. «Celebravam o Natal as que tinham meios de subsistência e as que eram bastante abastadas. Essas tinham uma vida diferente, mas não se compadeciam com as dificuldades dos outros», remata, conformado.
É a pensar em Rafael Afonso e numa mão cheia de idosos que se encontram em situação semelhante que a Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC) oferece todos os anos aos seus associados, por altura do Natal, uma série de almoços-convívio que servem o propósito de garantir conforto e companhia a quem não tem como fugir ao estigma de um Natal solitário. «Esta iniciativa tem mesmo por objectivo reforçar o espírito de Natal. Enquanto associação, a APOMAC deve ter a capacidade para oferecer aos seus associados a possibilidade de celebrar a quadra festiva. Como provavelmente saberá, os associados da APOMAC são na sua maioria aposentados e têm já uma certa idade. São pessoas que nem sempre têm a oportunidade de conviver com os outros nesta quadra festiva, até porque muitos deles vivem sozinhos», explica Francisco Manhão, em declarações a’O CLARIM. «Esta é uma das iniciativas que mais orgulham a APOMAC. Durante quatro dias consecutivos a associação ofereceu aos seus associados um almoço buffet», refere o presidente da direcção da agremiação.
Para Rafael Afonso, os almoços promovidos pela associação, em cooperação com um grupo local de hotelaria, constituem uma bênção. A iniciativa transforma um Natal solitário numa quadra solidária, uma metamorfose que tem para o idoso uma importância fulcral. «É uma iniciativa que tem um certo significado para o pessoal. No meu caso específico, que vivo sozinho, tem muito mais importância», sublinha. «A comunidade, dizem que é muito unida, mas não é. Quando uma pessoa se apanha isolada, de um modo geral, deixa de ser procurada. É desprezada», lamenta.
Os Natais de outrora
Numa mesa de Natal macaense – pelo menos na de Jacinta Noronha, 76 anos – não podem faltar o lacassá, o tacho, o presunto e o peru. As voltas da vida empurraram-na de um lado para o outro – de Macau para Hong Kong primeiro, de Hong Kong para Portugal depois e, por fim, de regresso à terra onde nasceu – mas o respeito pela integridade da mesa macaense, esse nunca se perdeu, ao contrário de outros hábitos que sucumbiram à voragem do tempo. «No dia 24 fazíamos sopa de lacassá. É uma ceia muito leve porque as pessoas iam à Missa do Galo e a seguir iam dormir», começa por contar. «No dia seguinte, o dia de Natal propriamente dito, o almoço era mais rico: tínhamos peru, faisão, presunto ou galinha assada, e da tradição macaense tínhamos o tacho, um cozido muito rico, feito com diversas carnes, vários vegetais e pele seca», diz Jacinta.
Por entre os rituais que ficaram pelo caminho estão a celebração da Missa do Galo na Sé Catedral e a montagem do presépio. Com as casas a encarecerem e o espaço a rarear, o hábito de instalar a manjedoura num canto da casa acabou por se perder. «Tenho um presépio muito antigo, que pertencia à minha avó. Durante muitos anos, quando os filhos ainda estavam em casa, fazia questão de montar o presépio. Agora em minha casa já não faço. São os meus filhos que fazem. Montam o presépio, enfeitam a árvore de Natal, colocam prendas e tudo o mais», revela a anciã.
Em casa de Fernando Nascimento, paredes meias com as instalações do Instituto Português do Oriente, o presépio é também pouco mais do que uma frágil e fugaz memória. Colossal como ele, a manjedoura que construiu ainda criança com o pai e que durante décadas foi parte central das celebrações de Natal no lar da família Nascimento, faz agora parte do acervo patrimonial da igreja de São Domingos: «Em minha casa tínhamos um armário já montado com o presépio. Esse armário tinha montanhas, tinha o Menino Jesus, tinha os animais, tinha os Reis Magos. Foi feito pelo meu pai e o meu pai deixou-o para mim», conta. «Como as casas agora são mais pequenas e nós não temos espaço para o manter, resolvi oferecê-lo à igreja de São Domingos. Agora, se eles o colocam ou não em exposição, não posso dizer nada», conclui Fernando, de novo com a candura do Oriente a adocicar-lhe a voz.
Marco Carvalho