Um olhar comovente sobre a fé do povo chinês
Um documentário filmado por dois missionários jesuítas em quatro cidades da China, no final da década de 1940, foi redescoberto por Joseph W. Ho, investigador norte-americano do Albion College. A obra, recentemente exibida em Macau, oferece um raro vislumbre sobre o quotidiano da comunidade católica do Continente nos anos que antecederam a implementação da República Popular da China.
Um registo raro que vislumbra a forma como vivia a comunidade católica do Norte da China, na segunda metade da década de 1940. É desta forma que Joseph W. Ho, professor do Albion College, nos Estados Unidos, se refere ao trabalho desenvolvido pelos padres Bernard Hubbard e William Klement em cidades como Yangzhou, Xangai, Nanquim e Pequim, na recta final dos anos 40 do século passado.
Os dois jesuítas norte-americanos documentaram extensivamente o quotidiano das comunidades católicas durante os anos da Guerra Civil na China, num esforço que deu origem ao documentário “Ageless China” (“A China Intemporal”, numa tradução livre para Português). A metragem, redescoberta pelo professor Joseph Ho, foi recentemente exibida em Macau.
«O padre Hubbard era realizador de cinema e atingiu alguma projecção na década de 1930 com os documentários que filmou no Alasca. Não residia na China, mas viajou para o País em 1947, na qualidade de capelão do Exército dos Estados Unidos e realizador», explicou o investigador do Albion College, instituição privada de Ensino Superior com sede no Michigan. «O padre Klement, por sua vez, era um missionário veterano que vivia em Yangzhou. Juntos, estes dois sacerdotes gravaram extensivamente nas cidades de Yangzhou, Xangai, Nanquim e Pequim entre 1947 e 1948, documentando a comunidade católica que vivia nestas cidades. O mais notável é que as imagens gravadas só foram editadas pelo padre Hubbard em 1949, numa altura em que as comunidades católicas na China estavam sob uma pressão cada vez mais significativa por causa da Guerra Civil. Este desfasamento temporal faz de “Ageless China” um registo inestimável sobre uma comunidade que se perdeu e o trauma a que foi sujeita, bem como oferece pistas para o que pode vir a ser o futuro da Igreja na China», acrescentou o académico.
Joseph Ho foi um dos oradores convidados do simpósio com que a Universidade de São José comemorou o centésimo aniversário do denominado Concílio de Xangai. Durante os seus estudos, elegeu como área de especialização académica o intercâmbio sino-americano na Ásia Oriental no Século XX. Em particular, vem estudando os «efeitos da tecnologia e da materialidade» na mediação desse intercâmbio ao longo do tempo. Domínios como a fotografia, o cinema e a produção audiovisual têm merecido, da parte do professor Ho, uma atenção especial. «A minha investigação começou como resultado de uma combinação de experiências pessoais e académicas. Comecei a interessar-me pela história moderna da Ásia Oriental, do Cristianismo, e pelo contributo da cultura visual para ambos quando comecei a ouvir histórias e a ver fotografias das experiências da minha família em Taiwan e na China [continental], ao longo do Século XX», contou o investigador. «Quando estudava na Universidade da Califórnia, em San Diego, escrevi uma tese sobre fotógrafos ocidentais durante a Guerra Civil Chinesa. Foi durante este período que conheci, quase por coincidência, os filhos de missionários protestantes que viveram e trabalharam na China antes de 1949. À medida que os fui conhecendo melhor e que nos fomos tornando amigos, descobri que os seus familiares tinham feito fotografias fantásticas e documentado a sua experiência no País».
REDESCOBRIR A CHINA CRISTÃ
A descoberta de tal espólio documental colocou Jospeh W. Ho na senda de uma obsessão: reabilitar o contributo dado por missionários de diferentes denominações religiosas, para registar as mudanças aceleradas pelas quais a milenar civilização chinesa enveredou durante as primeiras décadas do Século XX. O resultado de vários anos de trabalho e investigação académicos estão concentrados em “Developing Mission: Photography, Filmmaking and American Missionaries in Modern China”, obra publicada em 2022 pela Cornell University Press. «À medida que a minha investigação foi continuando, encontrei colecções de material visual pertencentes às congregações Jesuíta e Passionista, que eram igualmente fascinantes. Todos estes materiais – fotografias, filmes, textos e histórias orais – quando considerados em conjunto, permitiram-me contar uma história da captação de imagem na China, tanto numa perspectiva protestante, como numa perspectiva católica, entre a década de 1920 até aos anos finais da década de 40. Foi o resultado desta pesquisa que deu origem ao meu mais recente livro», referiu.
Mas mais do que um mero registo documental, “Developing Mission” oferece um raro vislumbre sobre a forma como as comunidades cristãs viviam a sua fé antes de 1949. O livro dedica um capítulo ao trabalho de documentação realizado pelos padres Bernard Hubbard e William Klement nos anos que antecederam a implementação da República Popular da China: «Nenhum destes filmes foram exibidos em público nos últimos 65 anos. A recente projecção de “Ageless China”, pela Universidade de São José, foi a primeira em público desde o final da década de 1950, e é bem possível que tenha sido a primeira vez que foram visualizados na China», apontou o académico.
«Consegui reconstruir as experiências em que se fundamenta o documentário depois de ter descoberto um guião de 21 páginas, escrito sob o formato de uma carta – enviada por William Klement a Bernard Hubbard, em 22 de Dezembro de 1949. Esta missiva, que encontrei no arquivo dos jesuítas na Universidade de Santa Clara, na Califórnia, detalhava alguns dos planos que apareciam em “Ageless China”, bem como num segundo filme menos refinado, intitulado “Yangchow 1948”. Convido as pessoas a explorar o conteúdo fascinante e o contexto destes dois filmes com maior profundidade em “Developing Mission”», rematou o professor Joseph W. Ho, que se apresentou na Universidade de São José com a câmara com que os dois missionários jesuítas filmaram ambas as obras.
Marco Carvalho com Jasmin Yiu