Macau, local de iniciação.
A Macau do século XVI era um centro de aprendizagem das línguas chinesa e japonesa. Era o local onde o europeu começava a conhecer a Ásia Oriental, mas era também, para chineses e japoneses, o único vínculo com a Europa e onde se podia ter contacto com a Cristandade europeia. O actual Jardim de Camões simboliza bem esse universalismo lusitano que esteve na génese de tantas fusões de culturas. É hoje, como bem sabe o leitor, um dos locais de leitura pública mais apetecíveis da cidade. De leitura, e não só.
«Em pleno século XVI, a intensidade de relações entre Portugal e a Ásia Oriental era enorme», diz a propósito o historiador Luís Filipe Barreto. Não estamos só a falar de produção literária e trocas de objectos. Estamos a falar do próprio «fazer ao modo de». A nossa louça regional das Caldas da Rainha, a chamada louça de Bordalo – caracterizada por aquele formato folha de couve e cor esverdeada – é louça de origem chinesa, da província de Cantão. «Os portugueses levaram com eles peças já feitas da China ou trouxeram ceramistas chineses para as fazer em Portugal», especula o professor, lamentado que «um tão vasto manancial de relevante matéria» continue, na sua essência, por estudar. «A gente não consegue perceber ainda, por exemplo, qual o grau de influência da pintura chinesa nas obras de arte produzidas em Portugal», adianta.
Nessas muitas e variadas trocas entre o Ocidente e o Oriente, a tecnologia militar assumiu particular destaque. A espingarda era sempre uma das ofertas de prestígio que os portugueses entregavam onde quer que chegassem na Ásia. Sabemos, por via das fontes chinesas, que Tomé Pires, por exemplo, ofereceu uma pistola e uma espingarda. E se era verdade que a China não precisava de desenvolver a indústria militar, pois senhoreava a pólvora e tinha significativa dimensão militar, o Japão, por sua vez, estava em plena guerra civil e de bom grado aceitava toda e qualquer ajuda militar.
Em ambos casos – chinês e nipónico – não se tratava apenas a capacidade de fazer igual, embora copiando; antes começar a fazer melhor. «Essa ideia de que os chineses, japoneses e coreanos fazem tudo exactamente igual, é errada», salienta Barreto. Mais do que imitar, eles incorporam elementos próprios em tudo aquilo que vem de fora. «O Japão vai cruzar linhas de fogo contínuo, por estacas, técnica que a Europa só nos finais do século XVII e ao longo do século XVIII irá adoptar», lembra o historiador.
Apesar da oferta das espingardas, não se pode dizer que a relação entre Portugal e a China tenha sido conflituosa. Muito pelo contrário. Prestaria Portugal ajuda militar à China, via Macau.
Portugal é o país europeu com a mais longa e mais profunda relação com a China. Infelizmente, são raros os estudos existentes sobre essa matéria, e mais rara ainda a divulgação junto do grande público. Estamos a falar de um intercâmbio pioneiro e já com mais de 500 anos.
Em toda a Europa existem três sociedades, ou três culturas, com uma significativa influência asiática. A Itália, no que diz respeito à Ásia do Próximo Oriente que se estende até à Índia, englobando o mundo otomano e persa; a Rússia, e aqui referimo-nos ao seu quinhão territorial cravado na Ásia Central; e Portugal, pois tem uma fronteira marítima de 500 anos com o Índico e com o Pacífico. Estas são as três «verdadeiras Europas asiáticas», já que as outras, muito mais recentes, resultam de conflitualidades e surgem sempre numa dimensão imperial. O expoente máximo dessa conflitualidade foi seguramente a Guerra do Ópio, «travada à força do canhão e à força da imposição e da humilhação».
No segundo andar do Centro Científico e Cultural de Macau, na Rua da Junqueira, em Lisboa, encontra-se em exibição talvez a melhor colecção na Europa de objectos e utensílios do consumo do ópio. Esta instituição publicou um livro que é, no fundo, «uma tese de mestrado sobre um determinado mandarim que, pelo facto de passar os exames, ganhou uma posição de prestígio e a família oferece-lhe uma caixa de ópio e toda a parafernália associada». Imposta em 1800, esta droga daria origem à Guerra do Ópio e ao Tratado de Nanquim, assinado em 1842. O ópio – trazido do norte da Índia, «aquilo que hoje se designa como Afeganistão» – era o único produto que a Inglaterra tinha para vender em troca dos têxteis chineses. A partir do século XVI o ópio deixa de ser só medicina e começa ser também vício imperial, e os portugueses são dos primeiros ocidentais a vender ópio à China, tendo esse produto sido objecto de conversa entre Garcia da Horta e Diogo Pereira, “hum homem fidalgo muito conhecido nestas terras”, tantas vezes mencionado no “Colóquio dos Simples e Drogas da Índia”. Na altura chamava-se anfião e não era fumado, era comido ou cheirado. «Aliás, na Inglaterra vitoriana acho que adormeciam as crianças assim», informa Luís Filipe Barreto.
Desse passado fala-nos a antiga Casa do Ópio, situada no Porto Interior, agora com função bem diversa. O edifício é património classificado e alberga a sede de uma conhecida associação de beneficência de Macau.
Joaquim Magalhães de Castro