PADRE RICARDO MARQUES, MISSIONÁRIO DA BOA NOVA EM CABO DELGADO (MOÇAMBIQUE)
A província de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique, está há mais de dois anos a ferro e fogo. Uma insurgência armada, protagonizada por grupos com alegadas ligações a movimentos terroristas sedeados no Congo, Tanzânia e Somália, obrigou mais de duzentas mil pessoas a abandonar as respectivas zonas de origem. Os ataques parecem não ter motivações religiosas específicas, mas levaram dezenas de missionários a suspender a actividade na diocese de Pemba. A violência armada recrudesceu ao longo das últimas semanas e a região está mergulhada numa profunda crise humanitária, diz o padre Ricardo Marques. Radicado em Cabo Delgado há cinco anos, o missionário da Boa Nova concedeu uma entrevista, por escrito, a’O CLARIM.
O CLARIM– As notícias que nos chegam de Pemba e de Cabo Delgado dão conta de mais de um milhar de mortos ao longo dos últimos dois anos e de mais de duzentos mil deslocados. Os ataques têm vindo a intensificar-se nas últimas semanas. Há o risco de os insurgentes conseguirem o controlo de facto de partes da província?
PADRE RICARDO MARQUES– Creio que sim. Essa é uma ameaça real e concreta, se, entretanto, não houver uma estratégia consistente, através da qual se encontre uma solução definitiva para este problema.
CL– Quando falamos de insurgentes estamos a falar de quem, necessariamente? De cidadãos moçambicanos que se radicalizaram? Ou são movimentos fundamentalmente estrangeiros?
P.R.M.– Não sabemos ao certo de quem se trata, nem as suas reais motivações. O que sabemos, na maioria das vezes, é proveniente de testemunhos pessoais ou de missionários que trabalham nos locais afectados ou de fontes de informação estrangeiras. A comunicação do Governo sobre este assunto tem sido praticamente inexistente. Contudo, creio que até 2019 a maioria destes insurgentes seriam de nacionalidade moçambicana. Actualmente, há uma mistura entre moçambicanos e outras nacionalidades. São grupos radicalizados ligados a alguns movimentos extremistas com bases no Congo, na Tanzânia e na Somália, entre outros.
CL– Pelo menos uma das missões da diocese de Pemba foi alvo de um ataque. A Igreja está entre os alvos recorrentes dos insurgentes? Os católicos são neste momento um alvo?
P.R.M.– Embora a religião predominante na província de Cabo Delgado seja o Islamismo, a relações entre cristãos e muçulmanos têm sido muito pacíficas. É verdade que algumas missões da diocese de Pemba já foram alvo destes ataques. Porém, não creio que se trate de um ataque deliberado aos cristãos de Cabo Delgado, nem à Igreja Católica. Pelo contrário, os ataques têm sido indiscriminados desde o seu princípio, independentemente da religião de cada um. Na verdade, os alvos preferenciais até têm sido as estruturas governamentais e administrativas. Não creio, por isso, que os católicos sejam, por si só, um alvo concreto destes ataques. Todos têm sido vítimas: cristãos, católicos, pessoas de outras religiões.
CL– Do ponto de vista da vivência da fé, de que forma é que estas investidas terroristas têm afectado o trabalho apostólico desenvolvido pela Igreja Católica?
P.R.M.– Estas investidas terroristas têm causado imensos transtornos não somente no trabalho apostólico mas, principalmente, na vida das pessoas. Muitas aldeias têm ficado desertas, dado que a maioria das pessoas foge dali, temendo pela sua segurança. Estimamos que o número de refugiados ultrapasse os duzentos mil, em toda a província. A maioria das pessoas foge para o mato e a para as vilas e cidades da província. Este movimento tem provocado alterações profundas no tecido social: onde antes havia agregados familiares com seis ou sete pessoas da mesma família, agora aumentaram significativamente. É muito comum na mesma casa habitarem mais de trinta pessoas, todas vivendo em condições muito precárias, sobretudo a nível de higiene, saúde e alimentação. Por outro lado, vive-se uma enorme insegurança nas áreas afectadas pelos ataques, apesar das autoridades continuarem a afirmar que tudo está sob controlo. Devido à insegurança vivida, principalmente na zona norte da província, a maioria das equipas missionárias tiveram de suspender o trabalho que faziam devido aos riscos que corriam. Ainda assim, a Diocese procura acompanhar a situação vivida pelas pessoas nas zonas mais visadas, recorrendo a diversas tecnologias de informação e comunicação, e mantendo uma cooperação estreita com as organizações presentes no terreno.
CL– De que forma é que a Igreja Católica se tem mobilizado para ajudar as populações deslocadas?
P.R.M.– Como é do conhecimento geral, o Papa Francisco, na encíclica “Laudato Si”, propôs a ideia de uma Igreja como uma espécie de hospital de campanha; isto é, uma Igreja acolhedora, capaz de sair de si mesma para ir ao encontro das periferias. No que diz respeito à situação dos refugiados, temos presenciado o testemunho admirável de tantas famílias que têm acolhido, com amor e dedicação, os que pedem abrigo, sem olhar sequer à sua raça, etnia ou religião. Trata-se, na maioria dos casos, de gente humilde e com poucos recursos que, ainda assim, se dispõe a partilhar com estes refugiados o pouco de que dispõe. Depois, a Cáritas Diocesana tem interagido com diversas organizações internacionais – Misereor, Programa Mundial de Alimentação, Cáritas norte-americana, entre outras – na procura de formas mais consistentes de assistência aos carenciados. Graças a estas parcerias, a Cáritas Diocesana tem conseguido alguns apoios fundamentais que, com a ajuda das paróquias da Diocese atingidas por esta questão dos refugiados, são distribuídos pelas famílias mais necessitadas. Além disso, a Igreja procura estar sempre presente no terreno junto destes refugiados, olhando atentamente para a sua situação e para as suas necessidades, às quais procura responder com os poucos recursos de que dispõe. Gostaria de acrescentar que apesar do esforço que estamos a fazer continuamos a necessitar de muito apoio. Neste sentido, pessoas e organizações que queiram ajudar as vítimas dos ataques em Cabo Delgado, podem fazê-lo através da Cáritas Diocesana de Pemba, que posteriormente se encarregará de fazer chegar esse mesmo apoio às famílias mais necessitadas.
CL– Se a situação no terreno continuar a intensificar-se, o Governo de Moçambique poderá ter que pedir ajuda ao exterior?
P.R.M.– Creio que sim. Penso que será inevitável que o Governo tenha, mais cedo ou mais tarde, de pedir apoio. Além disso, creio que este não é só um problema de Moçambique, dado que parecem existir ligações a redes terroristas estabelecidas noutros países como o Congo, a Tanzânia, a Nigéria e a Somália. Todavia, penso que esta terá de ser uma acção bem reflectida, na qual se defina uma estratégia consistente cujo objectivo seja, única e exclusivamente, a paz e a segurança, porque é isso que o povo merece. Penso que não será suficiente uma intervenção militar musculada, ainda que articulada entre os vários países. É necessário encontrar soluções consistentes para os problemas com que as pessoas se deparam: mais saúde, mais educação, mais justiça social, mais emprego, entre outros. Se tal não acontecer, os problemas de fundo continuarão e, mais cedo ou mais tarde, poderemos todos vir a sofrer com situações semelhantes às que estamos a viver actualmente.
Marco Carvalho