Sílvia Mendonça, Advogada

«Não acredito que o Poder Central queira interferir na autonomia da RAEM».

A revisão da Lei de Bases da Organização Judiciária está a colocar em sobressalto parte da sociedade de Macau, podendo significar uma forte machadada no sistema jurídico em vigor após a transferência de poderes. Quem o diz é a advogada Sílvia Mendonça, que, ainda assim, não acredita em interferências por parte do Poder Central. Em entrevista a’O CLARIM, fala também de assédio sexual, não sendo vítimas as mulheres, mas os homens.

O CLARIMMacau tem passado por grandes transformações nos últimos anos. Que leis podem ter maior impacto em termos sociais?

SÍLVIA MENDONÇA – Qualquer lei só existe porque há grandes impactos e alterações a nível social. Podemos tentar deter alguns fenómenos que já existem, ou então vamos regular novos fenómenos que passaram a existir, mas o impacto social não é propriamente da lei. É a sociedade que tem necessidade de regular situações ou de conter outras já reguladas de forma diferente.

CLA revisão da Lei de Bases da Organização Judiciária tem sido alvo de duras críticas…

S.M. – Já houve críticas, e eu também tenho as minhas… Realmente, nesse aspecto [da revisão] a lei pode eventualmente ser o princípio de alguma coisa ou o fim de outra, porque se está a transmitir à população em geral uma ideia que não corresponde – digamos – à realidade legal de Macau.

CLQual ideia?

S.M. – Parto do princípio que a Justiça existe, a legalidade existe, os tribunais são isentos, os juízes são independentes e há correcção em todo o sistema. Há um projecto de alteração da Lei de Bases da Organização Judiciária em que alguns aspectos me preocupam. Estão a criar normas no sentido de se pensar que se pode escolher um juiz porque o outro pode não ser suficientemente independente para lidar com certas questões. Seja porque se quer escolher juízes para acumulação em termos de serviço ou porque se quer escolher o procurador que vai lidar com alguma investigação ou com algum processo-crime. Esta parcialidade de escolha preocupa-me, não só porque depois pode haver alguns atropelos à própria imparcialidade e à Justiça – acredito que neste momento não existam – como também se está implicitamente quase a dizer que não há isenção e há que escolher pessoas especiais, para isto ou para aquilo, para haver isenção.

CLE quanto aos magistrados do Ministério Público?

S.M. – Sabemos que há um caso mediático, por causa do ex-procurador Ho Chio Meng, que foi investigado e está a cumprir pena de prisão por ter sido condenado. Mas é uma excepção! Não se pode alterar em função de uma excepção. Nós estamos na regra. Há que alterar quando se evolui em sentido diferente e há necessidade de regulação de uma situação que não existia anteriormente. Ou quando há necessidade de alteração em função da própria evolução social e das relações sociais. O Direito é sempre lógico. Tem sempre por base a pessoa, a protecção da pessoa e as interacções sociais. É isso que temos de pensar e ver.

CLQue impacto social pode causar a Lei de Bases da Organização Judiciária, caso vinguem as alterações que têm sido alvo de críticas?

S.M. – Acredito que possa ser um grande atropelo ao sistema. Temos que ver com o tempo, mas não acredito em parcialidades… Seríamos uma monarquia.

CLOu uma ditadura…

S.M. – Não queria ir tão longe. Certamente, é mais uma questão social do que uma questão política. Não acredito que haja qualquer interesse do Governo Central em estar a interferir na independência [judiciária] e na autonomia da RAEM, como aliás têm demonstrado as muitas opiniões do excelentíssimo Presidente [Xi Jinping].

CLSerá que determinadas pessoas com grande poder em Macau estão de alguma forma a confundir o modelo de actuação do Poder Central, utilizando-o em proveito próprio?

S.M. – É possível. Essas coisas acontecem sempre em cada grupo económico ou político… Sabemos que uma característica essencial de Macau gira em torno do dinheiro. E quando se relaciona dinheiro com poderes económicos, obviamente há lóbis, mas também há questões políticas. Se cruzarmos estes dois tipos de informação sabemos, com certeza, que cada um puxa o braço à sua sardinha. Mesmo assim, neste tipo de composição, que sempre existiu [na sociedade], há agora mais pessoas interventivas e interessadas na política. E aconteceu esta situação diferente com o deputado [Sulu Sou], que foi suspenso – uma questão muito mediática, sendo a primeira vez que acontece algo do género. Há aqui uma evolução política do sistema, pois houve uma certa preocupação com a atitude do deputado… E depois a postura da Assembleia [Legislativa]. Não quer dizer que concorde, juridicamente e pessoalmente, com a solução encontrada. Mas isso é uma questão de opinião pessoal.

 

ASSÉDIO SEXUAL

CLO “crime de importunação sexual” vigora no Código Penal do território desde meados do ano passado. São conhecidos casos de abusos denunciados por mulheres no mundo ocidental. Em Macau também foram denunciados casos na indústria do Jogo e no Ensino Superior. Serão as mulheres as únicas vítimas?

S.M. – Isso não é verdade. Discordo em absoluto. É mais fácil um homem ser vítima, quer de importunação, quer de outros crimes de ordem sexual, do que propriamente as mulheres. Por isso, choca-me sempre muito que só se fale das mulheres como vítimas. Os homens, especialmente se forem heterossexuais, têm muito mais dificuldade em reportar uma situação de importunação de qualquer tipo de assédio, e de qualquer questão que envolva uma relação mais íntima, do que as mulheres.

CLMesmo em Macau?

S.M. – Mesmo em Macau! Em primeiro lugar, nenhum homem quer ser vítima de uma situação destas. E pode ser importunado pelas colegas, pelas patroas, pelas chefes, e por aí adiante. São casos que normalmente não chegam a lado nenhum em função da própria estrutura do pensamento masculino e da própria assunção da masculinidade. Isto é quase universal e transversal. Trata-se de uma questão pessoal e de um preconceito profundo [o de denunciar, pondo em causa a sua masculinidade]. São situações que podem criar um grande mal-estar, e grandes problemas e traumas na vida de uma pessoa.

PEDRO DANIEL OLIVEIRA

pedrodanielhk@hotmail.com

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