LÚCIO DE SOUSA

Sem Macau não existia Religião Católica no Japão

LÚCIO DE SOUSA, PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE ESTUDOS ESTRANGEIROS DE TÓQUIO

Falar de Macau é falar do longo legado católico que durante quase cinco séculos esteve intimamente ligado à presença portuguesa na Ásia Oriental. O território abriga a mais antiga diocese do Extremo Oriente, mas a influência de judeus e de cristãos-novos nos primeiros anos da gesta portuguesa no Sul da China foram bem mais relevantes do que seria de esperar. Os cristãos-novos dominavam o comércio, asseguraram as defesas do território e impediram que a Inquisição se instalasse em Macau. Uma tal influência estendeu-se ao Japão, onde foram dos principais aliados da Companhia de Jesus, sustenta Lúcio de Sousa. Professor da Universidade de Estudos Estrangeiros de Tóquio, o académico português revisitou os primeiros anos da Cidade do Nome de Deus em entrevista a’O CLARIM.

O CLARIMNagasaki foi uma das cidades que o Papa Francisco visitou no âmbito da recente deslocação que efectuou ao Japão. Trata-se de uma cidade emblemática para a história do Catolicismo no Japão, mas também no âmbito das relações entre o Oriente e o Ocidente. Esta relação secular não teria sido possível sem Macau, cidade com a qual Nagasaki tem historicamente uma forte ligação…

LÚCIO DE SOUSA– Não me parece que seja uma ligação simplesmente importante. Parece-me que é a ligação. A meu ver é a ligação mais importante de todas, fundamental. Há um período em que esse corte com Macau é realizado, a partir de 1640. Essa ligação acaba até depois por ser retomada no século XIX, quando o Japão reabre as portas aos estrangeiros. As primeiras representações diplomáticas fixaram-se em Nagasaki e Macau volta a estar na vanguarda deste processo. A família Souza, por exemplo, é uma família de Macau; é uma família que tem raízes em Macau e que tem raízes em Singapura. Pelo menos um dos descendentes dessa família ainda reside no Japão. Eu falei com ele pessoalmente, mostrou-me os documentos da família, de quando a família veio para o Japão e eu depois estudei a importância deles dentro da diplomacia europeia na cidade de Kobe. A presença de Macau é uma presença incontornável. Pode é ser visível ou menos visível, depende da abordagem. No entanto, uma coisa é indiscutível. É a verdadeira presença. Sem Macau não existia Nagasaki, não existiam portugueses no Japão, pelo menos organizados da forma como estavam organizados. E não existia também a religião católica no Japão. É através de Macau que é criada uma plataforma de ensino, de educação que servirá não só para os europeus, mas também para os japoneses. Anualmente, diversos grupos de estudantes japoneses iam estudar para o Seminário, para Macau, para depois conduzir no Japão o processo de conversão do povo nipónico.

CLA partir de Macau chegaram missionários a Nagasaki, mas também cristãos-novos. Este era um fenómeno mais usual do que seria de supor, como comprovam algumas das investigações que conduziu…

L.S.– Sim, sim, sim. Macau era a periferia do Império. Não era exactamente fácil chegar a Macau, mas se não era fácil para os cristãos-novos também não era fácil para o poder judicial. As pessoas que viviam nesta região da Ásia e que se estabeleceram em Macau, a maior parte delas eram foragidos do reino. Não nos podemos esquecer que nos barcos que participavam na carreira da Índia, uma parte considerável dos tripulantes, daqueles que chegavam para colonizar, eram na realidade degredados. Eram criminosos. Chegados a Goa, tentavam fugir o mais rapidamente possível do alcance do poder judicial português e um dos lugares onde eles podiam viver de forma mais segura era, primeiro, Malaca e, depois, Macau. A própria presença portuguesa em Macau era uma presença condicionada. Ou seja, existia uma colónia portuguesa, mas essa colónia portuguesa não era só portuguesa porque se tratava de um território partilhado, sobre o qual era exercido também um poder chinês. Era uma presença muito negociada e muito frágil. Macau tornou-se um bom lugar para os cristãos-novos, principalmente a partir de 1560, ano em que é fundada a Inquisição em Goa. Nesta altura são desmanteladas também as primeiras comunidades de cristãos-novos em Goa e em Cochim, no âmbito de uma vaga de perseguições que se estendem até Malaca. Macau começa a ser colonizado oficialmente em 1557. Há informações que dão conta de portugueses a viver na região em 1555. Acho que Fernão Mendes Pinto detalha isso numa das cartas. No entanto, Macau torna-se num lugar em aberto para todos estes foragidos, um grupo onde se incluem degradados e criminosos, claro, mas também esses cristãos-novos que fogem da Índia. Não nos podemos esquecer que o comércio em Portugal nos séculos XV e XVI e mesmo anteriormente, na Idade Média e no Renascimento, era essencialmente controlado pelas grandes famílias de origem judaica. D. Manuel I, quando decide que os judeus já não podiam viver em Portugal, inventa esta ideia de conversão em massa fictícia. E porquê? Porque economicamente os judeus, na sociedade portuguesa, eram uma presença com tanto de incontornável como de indispensável. Não é possível encontrar em mais nenhuma corte europeia um quadro com a Família Real Portuguesa e ao lado da Família Real Portuguesa, juntamente com os bispos, temos um religioso que não é cristão: é um judeu, é um rabi que com ele tem a Torah, e essa Torah está aberta. Isto demonstra a importância dos judeus na sociedade portuguesa e a sua conexão com a própria Família Real.

CLQue importância tiveram estes cristãos-novos no desenvolvimento de Macau? Tratava-se sobretudo de mercadores, alguns com um papel muito relevante no comércio com o Japão…

L.S.– Fundamentais. São eles que asseguram Macau militarmente e os descendentes deles ainda continuam pelo território. A família Jorge, que é uma das famílias mais antigas de Macau, descende da primeira família identificada de conversos que se estabeleceu no território. Os descendentes desta família ainda existem e estão espalhados entre Portugal e Macau. A colaboração dos comerciantes de origem judaica foi fundamental, em muitos aspectos, para a sobrevivência de Macau. Foi através da intervenção deles que o mandarinato de Cantão permitiu que a comunidade europeia que estava estabelecida na região de Macau continuasse lá a viver. Por outro lado, temos inúmeros mercadores que são supostamente cristãos, mas que são efectivamente judeus. A identidade deles é revelada pelas cartas dos jesuítas, que deixam claro que a realidade é muito diferente daquela que lhes era apontada: tratava-se de cristãos-novos e eram os líderes da comunidade local de comerciantes. A Inquisição quando tenta penetrar dentro da sociedade macaense – e tentou por várias vezes – foi expulsa graças à intervenção desses mercadores conversos. Em Macau, depois, os descendentes deles casam-se com filhos e filhas de comerciantes cristãos. As famílias acabam por ficar um pouco misturadas. Há como que uma aliança. No caso de Macau, temos uma comunidade logo inicial de origem judaica, que juntamente com os cristãos se estabelece no território, e logo depois temos um grupo bastante substancial de judeus foragidos ou de cristãos-novos foragidos da Inquisição que vão passando pelo Delta do Rio da Pérola. As raízes populacionais de Macau e as raízes identitárias de Macau, uma grande parte delas vai beber ao Judaísmo e vai beber a estes cristãos-novos. Eles estendem-se depois a Nagasaki e, no caso de Nagasaki, temos documentos incontornáveis, que são produzidos em Nagasaki sobre os cristãos-novos. Eu publiquei um trabalho sobre isso.

CLQue tipo de documentos? Redigidos por quem?

L.S.– Esses documentos são relatórios sobre a presença cristã-nova em Nagasaki. Estes cristãos são de origem portuguesa e os documentos encontram-se na Cidade do México. Foi num arquivo mexicano que encontrei esses documentos. Estão escritos em Português, na sua grande maioria, mas há alguns escritos também em língua espanhola. Num deles, temos o bispo D. Luís de Cerqueira a fazer um relatório e nesse relatório temos a descrição de como era a vida dos cristãos-novos em Nagasaki: de como eles viviam separadamente dos portugueses, de como geralmente eram foragidos e, como tal, não podiam estabelecer-se legalmente em Macau. Uma parte deles era perseguida pela Inquisição, mas outra parte eram aliados dos jesuítas e ajudavam inclusive os jesuítas no seu projecto de conversão do Japão. Dentro da própria Companhia de Jesus conseguimos identificar vários jesuítas de origem judaica, nomeadamente Luís de Almeida, que foi quem introduziu a medicina europeia no Japão. Luís de Almeida era de origem judaica, foi treinado e recebeu o diploma das mãos do médico pessoal do rei. Não estamos a falar de uma pessoa qualquer. Luís de Almeida reuniu fortuna na Ásia e essa fortuna serviu para a Companhia de Jesus sobreviver no Japão. Foi graças a ele que os jesuítas sobreviveram. Foi ele que introduziu a medicina, foi ele que participou na formação das primeiras Misericórdias. No Japão, nessa altura, existia um grande problema em relação à lepra. Tentou combater o problema da leprosidade, da indigência social, da pobreza a que estavam sujeitas as mulheres viúvas e os órfãos. Criou hospitais para as proteger e para as educar. Ele foi um dos pilares fundamentais da presença jesuítica no Japão. Mas temos outro jesuíta, que é o Ayres Sanchez. É ele quem introduz vários aspectos da cultura europeia no Japão, como por exemplo a música, além de ser um dos maiores escritores da cultura europeia no Japão. As cartas que escreve são de um Português extraordinário. Era, com toda a certeza, um académico.

CLA primeira mulher chinesa a chegar à Europa, chega pela mão de conversos. De quem se trata?

L.S.– Interessa-me estudar os movimentos macro da história, mas não nos podemos esquecer que a história é feita por pessoas. Paralelamente, comecei a estar interessado em recuperar a memória destas figuras asiáticas que, de alguma forma, entram em contacto com a cultura europeia. Entre elas, encontra-se esta menina, oriunda da região de Cantão que, por volta de 1560, viaja do Sul da China para o Japão. É baptizada no barco e, depois, juntamente com dois barcos de mulheres, que essencialmente se destinavam a servirem de escravas sexuais dos portugueses, é enviada para Malaca e de Malaca é enviada para a Índia, onde é vendida. Acaba por ir parar a Cochim, onde será vendida ainda criança a uma portuguesa ou indo-portuguesa chamada Lalanda de Menezes. Depois é novamente revendida em Goa, onde é comprada por uma família muito rica de cristãos-novos – uma família chamada Milão – e depois segue para Lisboa, onde viverá como cozinheira desta família. Acaba por ser libertada por esta família, mas continua a servi-la e, por causa da Inquisição, quando esta família é perseguida, ela terá um papel fundamental, aproveitando a condição de ser escrava para permitir a fuga dessa família para outros países europeus, onde a Inquisição portuguesa não tinha raízes. Acaba por morrer em Hamburgo. A família continua e vai acabar por se fixar em Amesterdão. Eu por acaso tenho o contacto de um descendente dessa família, com quem falo esporadicamente.

CLMencionava há pouco a Misericórdia de Nagasaki. Foi a mais importante, mas não foi caso único no Japão…

L.S.– Existiam outras Misericórdias, mas a Misericórdia de Nagasaki era, de facto, a mais importante. E também era única, uma vez que a Misericórdia de Nagasaki era controlada inteiramente por membros japoneses. Não tinha qualquer intervenção europeia. Apenas a estrutura era europeia, mas era basicamente controlada pelos comerciantes e pelos líderes locais da região. Ao mesmo tempo há também, através da Misericórdia, a criação das Irmandades, que se prefiguram como uma forma de reforçar o Cristianismo, principalmente quanto se entra no período de perseguição e de proibição. É claro que estas instituições católicas eram instituições muito importantes e instituições de grande valor, principalmente para a preservação da fé católica.

CLO que tem agora em mãos, depois de ter deambulado pela história dos cristãos-novos em Macau e em Nagasaki?

L.S.– Geralmente escrevo os livros com alguma antecedência e depois coloco-os no armário, supostamente para os destruir. Ou seja, para não ficar emocionalmente ligado a esses livros e voltar a ler aquilo que escrevi e destruir tudo aquilo que acho que não está correcto ou do qual não gosto. Tento, de alguma forma, ser neutral e procurar conseguir – apesar de ser impossível – que a minha voz e que o meu julgamento desapareçam. O meu propósito é o de deixar que estas pessoas que eu estudo possam falar por elas mesmas. Eu comecei a publicar aos poucos em revistas internacionais pequenos trabalhos de análise sobre a presença dos cristãos-novos em Macau e as ligações que mantinham com o Japão e com as Filipinas. Neste momento já tenho esse livro acabado sobre a presença dos cristãos-novos em toda esta região. É um trabalho que não se cinge apenas aqueles que mencionei nesses pequenos textos, mas também a outras pessoas que não mencionei. Talvez no futuro publique em Inglês um compêndio de toda a presença judaica que pude encontrar e toda o seu contributo nesta região da Ásia.

MARCO CARVALHO

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *