RITA VALADAS, PRESIDENTE DA CÁRITAS PORTUGUESA

RITA VALADAS, PRESIDENTE DA CÁRITAS PORTUGUESA, EM ENTREVISTA À REVISTA FAMÍLIA CRISTÃ

«Não nos podíamos conformar sem tirar todas as crianças da pobreza»

Rita Valadas assumiu a presidência da Cáritas Portuguesa em Novembro de 2020, em plena pandemia. Já tinha passado pela organização e trabalhou na Santa Casa da Misericórdia. Nesta entrevista, defende que «é difícil» erradicar a pobreza e que é preciso mais apoio na área da saúde mental.

FAMÍLIA CRISTÖ É inevitável olhar para o panorama da Europa e para as fronteiras da Europa, com milhares de migrantes a tentar entrar ou que tentam sair de França para o Reino Unido e que morrem no caminho ou às portas. Como vê esta situação?

RITA VALADAS– Sinto-me tão pequenina. Sinto-me mesmo pequenina. São duas situações muito diferentes. Nós estamos quase num empurranço entre a velha e a nova Europa, com a saída do Reino Unido. É quase o Reino Unido contra a Europa ou a Europa contra o Reino Unido, não sei muito bem, fazendo utilização das pessoas como arma de arremesso e facilitando caminhos para conduzir as pessoas a sítios que não têm saída. Que é o que acontece na Bielorrússia-Polónia. Faz-me imensa confusão e – sem qualquer valorização política – o que eu sinto é que há um conjunto de pessoas que abordam a Bielorrússia e a quem são abertos corredores para chegarem a um sítio em que se vive entre arames farpados, sem nenhum tipo de cobertura, sem nenhum tipo de protecção. Nós nunca devíamos permitir isto.

FC– Qual a solução?

R.V.– Sempre defendi que as questões que trazem as pessoas a fugir deviam ser tentadas resolver primeiro nos sítios em que elas estão, porque nós ao trazermos essas pessoas estamos a dar-lhes as condições que estamos a dar e ao mesmo tempo a desinvestir nos países que têm imensos potenciais e riquezas e onde devíamos tentar mediar. É certo que a Europa não tem capacidade de receber o mundo inteiro que anda a fugir e depois ainda por cima damos más condições e depois guerreamos dentro de nós e entre nós por causa das condições que damos… Agora, nós devíamos dizer que não temos condições para estar a receber. Temos pobres na Europa. Já temos muitas pessoas a quem não conseguimos dar resposta.

FC– E a nível europeu, há países que já pediram financiamento da União Europeia para construir muros e estruturas que impeçam as pessoas de entrar. O que deveria ser feito, na sua opinião?

R.V.– Fazer muros não resolve o problema de ninguém. No mínimo as pessoas deviam ser conduzidas ao seu lugar de origem ou a um lugar de opção em que existisse espaço, se não tivermos condições para receber. Mas nós sabemos que muitos dos migrantes são, se calhar, a solução para a velha Europa envelhecida, carcomida, pouco audaz. Faltam aqui algumas respostas que têm que ver com empregabilidade, não têm que ver com apoios sociais. Não temos condições para ter apoios sociais para as pessoas que já cá vivem. Não temos condições para retirar as pessoas da pobreza em Portugal. Para que é que convidamos as pessoas? Ao fim do tempo em que estão apoiadas as pessoas ainda precisam de apoio económico. Isto é uma coisa que precisa de convocar a Europa no seu todo. Mas quem tem de dizer se temos condições de receber em condições dignas é Portugal.

FC– Disse que Portugal não consegue acabar com a pobreza que tem. Não há uma estratégia ou não é possível acabar com a pobreza?

R.V.– É o problema da diferença entre combater e erradicar. São duas coisas diferentes. Nós, na verdade, o que temos da pobreza são números. Quando me falam dos milhões de pobres, faz-me sempre muita confusão. O nível de pobreza é feito tendo em conta uma mediana de rendimento. A variação do nível de rendimento altera quem é pobre e quem não é pobre. Quem fala da pobreza em Portugal fala dos números e a pobreza em Portugal varia com isto. Aconteceu agora. Com esta convocatória: “retirámos não sei quantas pessoas da pobreza”. Não retirámos nada! Alterámos o sítio da mediana.

FC– Não quer dizer que as pessoas vivam melhor?

R.V.– Tirámos números, mas não tirámos pessoas. A situação das pessoas mantém-se na mesma. Agora é até mais límpido olhar para isso do que noutras circunstâncias. Porque neste momento nós sabemos que há mais pessoas em risco. Há mais pessoas que recorrem à Cáritas para pedido de apoio do que antes da pandemia chegar. Como é que os números dizem que baixou!? Não pode ser. Em algum lado está o erro.

FC– Como presidente da Cáritas, como olha para a pobreza em Portugal e como se pode erradicar? Ou não se pode erradicar e temos de viver conformados com esta ideia de que haverá sempre pobres?

R.V.– As situações de pobreza só se vêem perto. Os números não se vêem perto. A minha questão quanto à leitura da pobreza e à sua erradicação tem que ver com as relações de proximidade e envolvem a própria pessoa. A contratualização é muito importante. Tem de haver compromissos de ambas as partes. Encontrar medidas de política que sejam dar rendimento, se isso não for num pacote de inserção dificilmente tirará as pessoas da situação em que estão. Se eu acho que se pode erradicar a pobreza? O caminho é difícil. O Papa Francisco diz «pobres, sempre os tereis entre vós». E eu acredito que sim, até porque pobrezas há muitas. A Rita, técnica antes de ser presidente da Cáritas, reconhece que há um problema de solução em Portugal que carece de algum investimento e que tem que ver com a área da saúde mental. Muitas pessoas estão na situação em que estão e precisavam de um apoio na área da saúde mental de proximidade. O que considero é que há poucos recursos nesta área e são recursos na linha da psiquiatria, psicologia. É um olhar que falta às equipas interdisciplinares e às equipas no terreno. Muitas famílias, se calhar, equilibravam-se se fosse resolvido um problema de alcoolismo de alguém, um problema de dependência de outro, uma deficiência apoiada na família.

FC– Mas perceber isso só estando perto e tendo uma equipa multidisciplinar que olhe cada família no seu conjunto. Este tipo de apoio concreto multidisciplinar existe?

R.V.– Há aqui uma figura-chave que é o gestor de caso, que conhece a família toda e conhece as suas dificuldades. O acompanhamento da família pode ser feito pela entidade que tiver a solução mais importante para aquele território ou para aquele caso. Na minha perspectiva técnica, eu diria que seria importante que todas as situações de fragilidade pudessem ser acompanhadas por aquilo que é o maior determinante da sua situação de fragilidade. Por exemplo, se uma família tem uma situação de grande fragilidade porque há um problema de droga, devia ser acompanhada por alguém que seja especialista na resolução do problema da droga, mas que tenha a visão da família toda.

FC– Mas este gestor de caso não é generalizado ou é?

R.V.– Não.

FC– E devia ser?

R.V.– Acho que devíamos ter coragem para o fazer. Não é o modelo normal de funcionamento. O funcionamento e o atendimento é feito por uma equipa do Estado ou de uma instituição protocolada e essa instituição tem essa responsabilidade. Ora, nem o Estado tem acesso a todas as áreas do Estado. Se calhar a situação inicial de uma triagem de situações poderia encaminhar as mais frágeis para este gestor de caso que acompanha a família inteira.

FC– Em Julho de 2021 dizia que a pobreza resultante da pandemia ainda não tinha chegado. Já chegou?

R.V.– Há uma segunda crise social que não nos retira da angústia. Mas ainda não temos certeza sobre as consequências do “lay-off”, porque as empresas ainda não se posicionaram. Na questão das moratórias, quando os bancos se posicionaram e negociaram com as famílias realisticamente, as famílias conseguem agora pagar. Mas são muitas as situações que nos estão a vir por causa de terem de voltar a pagar a prestação e não terem condições para as pagar. Isso é uma preocupação diária para nós. É uma situação que só se agudiza se as empresas não conseguirem garantir o emprego. Se as empresas não conseguirem resolver o problema da falta de peças e não conseguirem fazer, vamos ter mais desemprego. Há aqui um espaço de tempo. Quando as pessoas vão para o desemprego, têm um tempo em que recebem o subsídio de desemprego e depois ainda têm mais um tempo em que recebem o subsídio social de desemprego. Por isso é que eu digo que a situação social sobrevém muito depois da crise económica. Em 2019, estávamos a conseguir ter alguns resultados da crise económica que nos afectou em 2008. Estávamos a ter sinais de retoma dez anos depois.

FC– Um dos estudos sobre a pobreza concluiu que os idosos e as crianças são os mais atingidos pela pobreza. Que especificidades encontra aqui?

R.V.– Temos muitos idosos com baixo rendimento. Têm muitas superveniências com encargos com saúde. São rendimentos baixos e não garantem um equilíbrio e uma serenidade permanente. Nós temos muitas, muitas, muitas pessoas com trabalho que estão abaixo do limiar da pobreza. A questão dos baixos rendimentos é uma questão de fragilidade em situação de crise. As crianças, já é uma situação diferente… É o meu outro murro no estômago. Não há pobreza infantil. Há pobreza das famílias que têm muitas crianças. Esse estudo também diz que um dos factores que pode levar as famílias a entrar numa situação de pobreza é ter muitos filhos. Isto é a contra-mensagem que nós podemos ter. Um filho é sempre uma riqueza tão grande! Alguma vez posso olhar para uma criança e pensar que não é um bem!? Acho que não nos podíamos conformar sem um desafio que fosse tirar todas as crianças da situação de pobreza. Também sabemos que a pobreza se reproduz geracionalmente. Se não conseguimos tirar as crianças, não vamos conseguir tirar os adultos do futuro. O que estamos a falar é de famílias que deviam ser ainda mais apoiadas porque têm muitos filhos. Os filhos são a esperança no futuro.

FC– Como é que as famílias podiam ser mais apoiadas?

R.V.– As nossas políticas sociais precisavam de uma receita nova. O abono de família era uma prestação de apoio à natalidade. Hoje não é de todo, porque senão não haveria escalões. O apoio à natalidade não olha para o nível de rendimento e não devia olhar para ter efeito. O abono de família é olhado como apoio social e serve para resolver os problemas da pobreza. Se somar o RSI [rendimento social de inserção] com o abono de família, talvez tire a pessoa desta mediana. Isso não quer dizer nada. Porque quando a pessoa deixar de receber abono de família, esta família cai. Quando deixar de haver RSI, esta família cai. O rendimento mínimo garantido nunca retirou ninguém da pobreza. Depois alterou-se a medida e passou a chamar-se rendimento social de inserção. Dizia-se que aquela prestação era a acrescentar a outros apoios que a pessoa já tem, com um projecto, um compromisso entre a pessoa e vários sectores em que a pessoa estava mais frágil. Era preciso o emprego, era preciso a saúde, era preciso a educação… todos assinavam um contrato.

FC– Isso acontece?

R.V.– Mesmo quando esse contrato existia nunca foi cumprido. Na verdade, cada pessoa que recebe o rendimento social de inserção é-lhe cortada a prestação. Mas o que é que acontece ao Estado se incumpre? Nada.

FC– E o Estado incumpre?

R.V.– Incumpre, claro. Como me dizia uma técnica, «hoje o rendimento social de inserção é uma pessoa sem recursos e uma assistente social sem recursos». As assistentes sociais não são donas de bancos e a solução não é apenas dar dinheiro. Mas se a única solução que a pessoa tem ao seu dispor forem os recursos de direito, esses recursos não permitem que ninguém saia da situação de pobreza. Devia haver coragem para rever todas as actuais prestações e mantê-las sob o seu propósito, seja qual for a situação que nos leva a alterar. Foram situações de crise que levaram a juntar dinheiro àquelas prestações. Só que a perda de propósito também altera o compromisso.

FC– O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) traz-lhe alguma esperança?

R.V.– Traz-me esperança e medo. Isto é um empréstimo. Vamos ter de o pagar. Nós já devemos muito. Por isso temos aqui uma obrigação de utilizar esta oportunidade de dinheiro para o multiplicar em produtividade. Não pode ser um dinheiro para pôr em cima dos problemas. Tem de ser um dinheiro para resolver os problemas. O PRR não pode ser desperdiçado de maneira nenhuma. É muito dinheiro e nós não podemos mais uma vez utilizá-lo para juntar betão às respostas sociais, por exemplo. Em cada novo programa criamos uma resposta social tipo muito importante. É por isso que criámos muitos lares de idosos em todo o lado. E hoje já se fala que aquilo não é resposta que se ofereça aos idosos. Há imensos centros de dia e a situação pandémica rebentou com os centros de dia e as pessoas têm medo de se juntar… Temos de ter muita elasticidade na definição das medidas de estratégia por todo o território. Não podemos resolver o problema só criando programas para encontrar respostas que se construam, terminem e inaugurem, mas depois não sejam respostas para os problemas sociais. Vamos aceitar que existam soluções diferentes para os mesmos problemas em territórios diferentes? Eu isso não tenho a certeza. Se for para inserção, para recuperação das pessoas, se for para encontrar um caminho, todo o dinheiro é pouco. Mas se for utilizado assim. Se não, aquilo que não é pouco transforma-se numa enorme dívida sem resolver os problemas das pessoas.

CLÁUDIA SEBASTIÃO

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