PADRE LUÍS SEQUEIRA

PADRE LUÍS SEQUEIRA SJ, EM ENTREVISTA A’O CLARIMNOS 500 ANOS DA CONVERSÃO DE SANTO INÁCIO DE LOYOLA

«A nossa espiritualidade é de fronteira»

O Ano Inaciano que arrancou há dias é, sobretudo, um convite à reflexão sobre a experiência actual da Companhia de Jesus, tendo em vista o futuro. A efeméride evoca o início do percurso de conversão de Santo Inácio de Loyola. No entender do padre Luís Sequeira, deve ser encarada como uma oportunidade para uma reforma de vida e de valores, mas também para entender as actuais circunstâncias da Igreja Católica em Macau e na China, país que em grande medida continua a ser um país de fronteira. Antigo Superior dos Jesuítas em Macau, o padre Luís Sequeira em entrevista a’O CLARIM.

O CLARIM– Que importância tem o Ano Inaciano que agora começou?

PADRE LUÍS SEQUEIRA– O Ano Inaciano tem, antes de mais, por base a comemoração de um facto histórico. Todas as pessoas e todas as instituições têm de ir à sua própria história e assumi-la. Neste caso, nós recordamos dois factos, unimos esses dois factos e celebramos um jubileu que se prolonga por um ano: o primeiro remonta a 1521. Santo Inácio apanhou um balázio fortíssimo quando estava a defender a cidade de Pamplona. Esta ocorrência deixou-o ferido com gravidade, mas permitiu que Inácio iniciasse o seu caminho de conversão e é isto que nós recordamos. Eu diria que é um aspecto muito humano, quando há momentos críticos, momentos de mudança e nós, os Jesuítas, recordamos este momento. Isto sucedeu há 500 anos. A outra data é de 1622, um século depois, quando é declarado santo pela Igreja. Santo Inácio foi canonizado em 1622, o que quer dizer que se celebram 400 anos de santidade no próximo ano. Juntando os dois, temos dois importantes motivos para uma comemoração centenária que tem, como bem se compreende, um sentido particular para todos nós hoje, mas sempre olhando o futuro. Juntando este ano, temos a conversão por um lado, e a canonização, por outro. A canonização, diria, é o ponto máximo da vida de um homem. É ser declarado em termos espirituais um homem de grande dignidade, um homem que, não sendo perfeito, tem uma vivência muito perfeita da vida, com grande sentido de Deus. São estas as duas datas que juntamos e que transformamos num duplo centenário, 500 e 400 anos, o qual nos faz olhar o passado e, diria até, procurar uma nova inspiração. Faz-nos viver o presente, mas também ir além das celebrações, das próprias festividades que temos e nos convida a reflectir sobre a nossa experiência actual e, como sempre, preparar o futuro. Isto é, estabelecer orientações ou directivas que nos permitam viver o passado no sentido da graça inicial ou do espírito do fundador da nossa Companhia de Jesus, aplicado ao presente, mas também olhando futuro.

CL– De que forma é que o incidente que sofre na Batalha de Pamplona acaba por ser determinante para a fundação da própria Companhia de Jesus?

P.L.S.– Inácio é ferido em 1521, mas só funda a Companhia em 1540, quase vinte anos depois. A evolução a que se submete começa aqui e tenho dúvidas que Santo Inácio pudesse vir a fazer o caminho que fez – humano, espiritual e até institucional – sem este acontecimento. É isto que recordamos, tendo em conta que a perspectiva do centenário é a de sermos concretos na vida que temos, o homem que somos, todos nós com os nossos limites, mas com as nossas capacidades e, acima de tudo, com toda uma dimensão profunda onde Deus actua e que pode transformar seja quem for. É esta perspectiva muito humana que nos ajuda a perceber que hoje – como somos, com todas as nossas dificuldades – devemos olhar para homens como este – ou para outros, como Teresa de Ávila ou João da Cruz –, que são homens, de facto, de grande valor, que vão ajudar a fazer uma grande transformação. Se olharmos para o mundo como ele está hoje, pessoalmente estou convencido que estamos a precisar de uma iminentíssima conversão e de uma iminentíssima reforma. E é uma reforma que se faz necessária a todos os níveis, desde a nossa chamada Santa Companhia de Jesus – embora seja sempre a mínima, como Santo Inácio gostava de lhe chamar – até à Igreja, em geral, e ao mundo, em geral. Estamos a precisar de uma iminentíssima reforma de vida e de valores.

CL– A Companhia de Jesus foi uma lufada de ar fresco na época em que foi fundada…

P.L.S.– Sim. Estou convencido que todos os santos são geniais para o seu tempo. Olhando para a história, há sempre alguém que vive, embrenhado no seu tempo, mas mirando o futuro. Tem uma certa visão profética do futuro e, portanto, estabelece estruturas, seja pessoas, sejam institucionais que acompanham essa visão. Na altura, a Igreja tem em mãos a resposta à Reforma protestante e um fenómeno novo, os Descobrimentos. Nós, os Jesuítas, estamos extremamente unidos à História dos Descobrimentos, tanto é que Inácio de Loyola era amigo de D. João III. É João III que lhe vai pedir seis homens para o Império Português e Santo Inácio diz-lhe: «Levas dois e vais com sorte». Esses homens são Francisco Xavier e Simão Rodrigues, que é o que vai fundar a província portuguesa, a primeira na Companhia de Jesus. Depois da Renascença, com toda esta abertura das Descobertas ao mundo, vai aparecer uma necessidade que vem encontrar na Companhia de Jesus uma resposta, de certo modo em contraposição com os Franciscanos e com os Dominicanos, que apelam muito mais à vida comunitária. Ora, esse não é o caso connosco. Inácio de Loyola vai criar uma instituição de grande movimento e de grande obediência. Há uma dimensão profunda, que se corporiza no quarto voto dos Jesuítas – o de obedecer ao Papa quando somos enviados em missão – e, por outro lado, a transformação interior que vai radicar nos exercícios espirituais, que são como que um fundamento para a força interior que é necessário nos homens de grande mobilidade. O homem, o santo ou a mulher de grande envergadura, tem de trazer normalmente as características do tempo, mas apresentar também uma visão que vai para além do tempo em que vive, como sucede com todos os homens que acabam por ter grande valor na História. Não estão limitados a ver o palmo que têm à frente do nariz ou a situação imediata, correndo o risco de se afogar nela. São homens que o compreendem, mas que vão além do imediato.

CL– Este início do Ano Inaciano coincidiu com a nomeação do actual Provincial, o padre Stephen Chow, para o cargo de bispo de Hong Kong. É a pessoa certa para enfrentar alguns dos desafios com que se depara a Igreja Católica na China?

P.L.S.– Eu diria que nós, os Jesuítas, temos determinadas características de actuação. E, mais uma vez, vamos ao fundo da nossa maneira de viver e do nosso carisma, em que a tal primeira preferência apostólica nos fala, que é a vivência dos exercícios espirituais e do discernimento. Isto são características formativas, muito típicas em nós, que ajudam muito a homens de fronteira. Aquilo que eu digo é que temos de aprender a estar n’Um País, Dois Sistemas. E é aqui dentro deste sistema, deste contexto sócio-político que vamos fazer a nossa missão. Sem estar a fazer comparações, eu só digo é que a nossa espiritualidade é de fronteira e, concretamente, estamos a viver numa fronteira. Uma criticazinha que faço aos meus é que em relação a este aspecto de “Um País, Dois Sistemas”, temos de o enfrentar. Há 25 anos que enfrentamos esta experiência e não estamos a fazer um estudo ou uma reflexão ou até uma oração mais profunda sobre esta realidade. É nesta realidade que temos de encontrar o caminho futuro. Agora, aquilo que temos de ter em atenção é o contexto sócio-económico. Temos duas ideologias. Uma segue a ideologia marxista, com um regime comunista; a outra, a ideologia liberal ou neo-liberal, com o tal regime dito de democrático – um regime que, como podemos ver, tem muitos buracos. Estas duas características são antagónicas. Eu até digo, em termos um tanto ou quanto marxistas, que há aqui uma tensão dialéctica. Tens duas realidades diferentes. E agora, como é que as vamos equilibrar? Esta é que é a grande dificuldade, isto é o que devemos esforçar-nos para perceber.

CL– O que é que está previsto em Macau no âmbito deste Ano Inaciano?

P.L.S– Aqui em Macau há um programa de actividades. Tivemos a missa inaugural e as quatro orientações que conformam o jubileu vão ter um dia especial, com algumas actividades, normalmente formativas. Seguindo a orientação do meu Superior, ele preferiu, acompanhado por nós, não tanto a celebração como tal, em dias de festa, mas mais, em determinados momentos durante o ano, ter uma actividade com as pessoas que nos são mais próximas, apostar um pouco mais na formação, na compreensão do espírito ou do carisma que nos orienta na nossa actuação, sendo que com os nossos colaboradores temos que ir é mais fundo. Além disto, haverá no dia 12 de Março do próximo ano uma missa de evocação da canonização e haverá também, no dia 31 de Julho, a celebração da festividade de Santo Inácio. Agora, estas quatro preferências têm um dia que lhes era dedicado, ao longo deste período. A ênfase, como dizia, não é tanto a celebração com pompa e circunstância, que poderá também ser boa. Optámos, sim, por organizar, com a orientação do meu Superior, dias de encontro em que, particularmente com aqueles que estão mais juntos de nós, aprofundemos a nossa espiritualidade e a nossa dinâmica apostólica e de serviço. Uma, é de um ponto de vista mais espiritual e que vai vir proximamente, lá para Junho. Haverá uma outra, mais ligada à juventude, depois outra mais ligada aos necessitados e aos migrantes e negligenciados. E haverá uma outra mais direcionada para a Natureza. Estas iniciativas serão sempre dinamizadas na companhia daqueles que normalmente trabalham connosco.

Marco Carvalho

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