O Fanatismo? Uma fé sem Deus
No dia 19 de Novembro de 2015, seis dias depois dos trágicos atentados na capital francesa que provocaram a morte de 130 pessoas, o padre Adrien Candiard, dominicano francês que reside no Cairo, fez uma conferência naquela cidade ainda atordoada pelos efeitos. O texto do seu discurso, ampliado, um ano depois, deu origem a um pequeno livro, “Comprendre l’islam” (Compreender o islão), sem notas nem bibliografia, para ser acessível a toda a gente. Trata-se de uma reflexão articulada, que a partir dos acontecimentos tentava responder às perguntas quentes do momento: “Devemos ter medo? O Islão, com os seus mil milhões de crentes, rejeita mesmo o nosso estilo de vida e a paz no mundo?” Poucos anos depois, Candiard publicou outro texto que dá continuidade ao tema: “Du fanatisme, quand la religion est malade” (Sobre o fanatismo. Quando a religião está doente).
As teses que Candiard defende podem ser resumidas em duas questões. A primeira: é necessário tentar compreender o Islão deixando de lado as simplificações. É isto que o autor afirma na obra “Compreender o islão”. Ou melhor, porque não percebemos nada, com o tom magistral que o distingue: “Um engenheiro muçulmano pensa como um engenheiro ou como um muçulmano? Um senegalês muçulmano reage como um senegalês ou como um muçulmano? Tudo isto é complexo. Eu sou um padre católico, membro da ordem dominicana. O meu cristianismo não se reduz a uma minha reacção, ideia ou atitude. No fundo, sou um tipo complicado. Porque é que os muçulmanos deveriam ser mais simples do que eu?”.
A segunda questão tem um valor teológico. E aqui o “filho do Iluminismo” surpreende, afirmando com letras claras que ter retirado a dimensão religiosa da cultura não foi a melhor coisa, por isso é que o mundo ocidental tem dificuldades em compreender um fenómeno religioso complexo como o Islão. “Livrar-se da teologia e retirar as questões religiosas do domínio da razão comum”, escreve em “Fanatismo!”, “significa correr o risco de se deixar influenciar conscientemente por teologias de que não temos o controlo, uma vez que as não podemos discutir”.
Nesta entrevista, o padre Candiard aprofunda os temas dos seus livros citados, não deixando de abordar temas actuais e quentes.
[REVISTA]JESUS– Iniciemos com “Compreender o islão”. Como é que o padre Adrien nos explica os trinta mil exemplares vendidos em França?
PADRE ADRIEN CANDIARD– Tudo graças ao subtítulo. Quem vê este livro na livraria pensa: “É verdade, eu também não percebo nada”. Escrevi-o porque intuí que o mundo ocidental tem dificuldades em se relacionar com o Islão. Outro elemento vencedor é que muitas afirmações ali contidas não se encontram na Imprensa nem no debate público, ainda que não sejam ideias inéditas.
RJ– Que defeitos encontra na comunicação pública sobre o Islão?
P.A.C.– Procuro refutar uma aproximação baseada no juízo moral, que se exprime no dilema: o Islão é bom ou mau? Já é hora de desmascarar um mito, a ilusão de que se possa classificar o Islamismo em definições e esquemas muito apertados. Tudo isto para os especialistas é muito claro, mas não o é para o grande público.
RJ– Fala também de dois becos sem saída, igualmente perigosos…
P.A.C.– Por um lado, há quem pense que existe uma espécie de “essência do Islão”, um destilado de religiões muçulmanas. Seria, de facto, muito cómodo poder dispor disto, mas não existe. O risco contrário é convencer-se de que existam tantos “islãos” diferentes que no fim o Islamismo “evapora-se” e, em última análise, deixa de ser possível identificá-lo como tal.
RJ– Vê uma ligação entre este modo de pensar e o desconhecimento do grande público sobre os temas teológicos?
P.A.C.– Sim. Em França, a pátria do Iluminismo, desde os finais de 1800, que se deixou de ensinar Teologia nas Universidades (excepto nas católicas), ao passo que na Alemanha não é assim. E isto é significativo, porque os lugares onde possamos encontrar um pensamento religioso são poucos. Pensa-se que é apenas para os investigadores. No mundo escolar, em França, há mais de vinte anos que se discute sobre a necessidade de falar de religião nas aulas, mas os professores infelizmente não têm formação adequada para isso. A ideia que prevalece é de fornecer uma espécie de cultura básica, graças à qual os alunos estariam em condições de conhecer o Ramadão e a Páscoa… Mas a religião é muito mais do que um conjunto de tradições, é também um pensamento. O pensamento crítico e reflexivo sobre a fé chama-se Teologia, que em França nós não temos. E é uma pena, porque assim temos dificuldade em compreender os clássicos, a começar por Pascal, talvez um dos maiores génios que tivemos.
RJ– No entanto, bastaria entrar numa catedral para nos apercebermos do impacto da religião na história e na cultura europeia…
P.A.C.– Quando uma pessoa retira a religião completamente do campo da razão, diante de temas como Deus, a felicidade, a santidade, o dom da própria vida, não tem a mínima bagagem para pensar e arrisca-se a ficar por slogans e afirmações delirantes.
RJ– Pode explicar melhor?
P.A.C.– Uma pessoa fica em risco quando ouve um interlocutor que lhe fala de Deus ou da vida eterna sem ter as categorias necessárias: é como se tocasse em material nuclear. A religião exercita um poder sobre as pessoas que se pode revelar incrível. Alguém que nunca tenha ouvido falar antes e depois se se encontra com o Absoluto pode perder seriamente a razão. E, como consequência, acaba por participar na guerra da Síria.
RJ– A crónica dos últimos tem-nos apresentado muitos jovens imigrantes, até de segunda ou terceira gerações, que redescobrem no Islamismo uma chave identitária e violenta. Como se explica?
P.A.C.– Estamos diante de uma realidade muito complexa, que não admite leituras redutivas. Um perfil unívoco do terrorista não existe: são muito diversas as classes sociais e os caminhos pessoais. Desconfio de quem tenha encontrado uma chave universal. Nem eu, enquanto estudioso, a possuo. A complexidade da realidade, porém, não justifica o analfabetismo religioso: a ideia segundo a qual se não falamos de religião estamos tranquilos, é filha, na minha opinião, de uma perfeita ingenuidade.
RJ– Como é que é, então, uma tentação recorrente?
P.A.C.– Existe um trauma na história europeia: as guerras de religião. Na Europa existem lugares em que a primeira experiência de diversidade religiosa que tivemos se revelou uma tragédia, no sentido literal do termo. Por causa do medo reagimos dizendo: “Não se fala de religião, porque quando o fazemos acabamos por nos matar”. Deste modelo, de carácter iluminista, hoje podemos ver as limitações. Colocar a religião fora da racionalidade corresponde a deixar à deriva quem segue a irracionalidade. É assim que vem a faltar uma chave interpretativa da realidade.
RJ– Não será por acaso que no final de “Compreender o islão” cita a famosa frase de Maslow: “Se alguém tem à disposição apenas o martelo, todos os problemas são pregos”. Chegou o tempo em que a análise política – por exemplo – deve ter em conta o “factor R”, “R” de religião?
P.A.C.– Em 2019 fui chamado ao Eliseu, no período em que Emmanuel Macron estava a preparar uma viagem ao Egipto. Este é um sinal de mudança: não se pode continuar a pensar que a religião não conta ou que seja uma coisa do passado. A ideia de que a religião possa ser um factor que leve as pessoas a agir – passados quarenta anos da revolução iraniana – já foi compreendida por todos. Devemos levar a sério a substância do discurso teológico que ainda custa.
RJ– Diante da violência de fanáticos islâmicos, muitas vezes fala-se de loucura. Mas com este tipo de reacção, na sua opinião, não se vai longe…
P.A.C.– Já Voltaire condenava fanatismos falando de delírios. Mas etiquetar os salafistas ou os jihadistas como loucos não ajuda, porque não explica como é que milhares de pessoas tenham escolhido sê-lo. Pensamos no Isis. Como explico em “Fanatismo!”, para que uma organização como esta possa funcionar não são suficientes os alucinados e os cínicos: são necessários também os crentes. Isto é, pessoas que tenham uma certa visão do mundo, aos seus olhos coerente e racional, e não um simples delírio colectivo.
RJ– Como definiria, então, o fanatismo, uma vez que considerá-lo como “loucura colectiva” não faz sentido?
P.A.C.– É fruto de uma teologia que colocou Deus entre parênteses; paradoxalmente, podemos chamá-lo de uma ausência de Deus, quase uma forma de ateísmo, que não deixa de falar de Deus, mas que na realidade o substitui.
RJ– Então para compreender um fenómeno deste tipo devemos ter uma aproximação teológica. Com que consequências?
P.A.C.– Significa, por exemplo, que devemos estudar com profundidade, ler os textos que ainda não estão traduzidos. Obviamente que é um trabalho árduo (são livros complicados), mas devemos fazê-lo. Será útil até para o delicado âmbito de uma “recuperação social” dos terroristas. É necessário mudar de rumo.
RJ– O que propõe?
P.A.C.– Sou bastante céptico em relação aos meios que uma sociedade agnóstica dispõe para enfrentar problemas que são tipicamente religiosos: pode-se curar, por exemplo, a paranoia ou resolver a exclusão, mas no que diz respeito ao fanatismo não conheço outra terapia senão o desenvolvimento da vida espiritual.
RJ– Se é errado usar a categoria de loucura, especulativamente a ideia de Islamismo moderado não resulta. No seu livro escreve: “Se me dissessem que sou um cristão moderado, ofender-me-ia”.
P.A.C.– A dialéctica moderação-radicalidade subintende a ideia de que o verdadeiro Islamismo é aquele violento. Mas pensando desta forma, outra coisa não fazemos senão dar razão ao discurso fanático. A moderação, mesmo sendo uma virtude, não é um conteúdo. Portanto, é preciso percorrer outro caminho, até porque nos devemos questionar que eficácia poderia ter um discurso sobre moderação para os jovens que estão fascinados com a proposta radical dos salafistas. Apenas outro discurso igualmente radical os poderá levar à mudança.
RJ– Portanto, aos muçulmanos devemos pedir que sejam mais radicais. Não é um paradoxo?
P.A.C.– Creio que exista na tradição muçulmana uma radicalidade profunda, mais autêntica, do tipo espiritual. A procura de Deus dentro de si e o encontro com Ele na oração pessoal, em vez de procurá-l’O no atentado-suicida, parecem-me uma aventura claramente mais radical, se for seguida seriamente. Neste sentido, a tradição islâmica tem muitas riquezas a seu favor, que hoje não estão a ser aproveitadas.
RJ– Escreveu também “Pierre e Mohammed”, um texto teatral, que coloca em cena a história de D. Pierre Claverie, bispo de Orão, na Argélia, e do seu amigo muçulmano, mortos juntos em 1996. Em que condições é possível uma relação entre cristãos e muçulmanos?
P.A.C.– A amizade entre cristãos e muçulmanos é possível e eu sou testemunha disso. Em relação a Claverie, estou profundamente convicto que a vida e a mensagem do meu confrade tenha ainda muito a dizer de nós, hoje. O bispo-mártir mostra-nos a possibilidade de sair de uma alternativa catastrófica: por um lado a tolerância que nos quer todos iguais, mas com a condição de diluir a nossa fé, por outro lado o manter as próprias convicções recusando porém qualquer abertura ao outro. Claverie conseguiu viver no meio dos argelinos respeitando não apenas as pessoas mas também as suas convicções religiosas. Contudo, ele morreu por causa da sua fé radical em Jesus. Uma radicalidade não identitária e fechada, mas autenticamente evangélica.
GEROLAMO FAZZINI
Republicado por Família Cristã
N.d.A.:O Padre Adrien Candiard nasceu em Paris, em 1982, e entrou na Ordem Dominicana em 2006. Hoje reside no Cairo, onde é um dos estudiosos do Islamismo mais apreciados. É também autor de espiritualidade e ganhou em França vários prémios com as suas obras.