PADRE JUAN CARLOS HAIDAR, ANTIGO ALUNO DE JORGE BERGOGLIO, É HOJE DIRECTOR DO CENTRO CATÓLICO DA UNIVERSIDADE SOPHIA NO JAPÃO
Antigo aluno de Jorge Bergoglio durante os anos em que o actual titular da Cátedra de São Pedro esteve à frente do Colégio Máximo de San Miguel, o padre Juan Carlos Haidar recorda Francisco como uma figura paterna, de trato fácil e grande espiritualidade. Para o teólogo argentino, mais do que um homem humilde e simples, o Sumo Pontífice é um bom discípulo de Jesus Cristo e a pessoa certa para promover uma necessária reforma nas antecâmaras do Vaticano. Hoje director do Centro Católico da Universidade Sophia, o sacerdote falou a’O CLARIM, na capital japonesa, sobre o futuro da Igreja Católica.
O CLARIM– Agora que a visita do Papa Francisco já faz parte do passado, que impacto diria que poderá ter no povo japonês, em particular nos católicos japoneses? Esta deslocação foi para muitos um sinal de esperança. Acredita que a semente que o Sumo Pontífice deixou pode crescer e transformar-se em algo mais?
PADRE JUAN CARLOS HAIDAR– A Graça Divina é daquelas coisas que não operam em sentido único. É necessário ter abertura para a receber; aceitá-la como se fosse algo nosso. É muito difícil prever que frutos poderão germinar desta visita ao Japão. Que foi uma bênção de Deus é algo muito claro. O resto depende de nós. Vai depender da forma como recebemos essa graça e como reflectimos sobre ela. Na minha opinião, tanto a Igreja como a sociedade japonesa estavam a necessitar de uma visita como esta. A Igreja no Japão, principalmente, porque é muito difícil ser cristão no Japão e todos temos a tendência de ser exactamente o oposto daquilo que o Papa Francisco é. No Japão a tentação é a de que nos tornemos um pouco pessimistas, porque as pessoas trabalham durante anos a fio e a impressão que têm é que a Igreja nunca cresce. Nos últimos anos os números mostram mesmo que está a regredir, provavelmente porque a população também está em declínio. Esta constatação não serve, no entanto, de consolação a ninguém. Sentimo-nos impelidos a dizer que as coisas são como são, mas devia provavelmente ser diferente com uma mensagem como a do Catolicismo. Seja como for, ser cristão no Japão é difícil e algumas das tentações são a desilusão e a falta de esperança, e o Papa Francisco está sempre cheio de esperança. Todas as suas mensagens apontam nessa direcção: “Não tenham medo”; “Mantenham a esperança”; “Continuem a trabalhar”. Este tipo de mensagens tem o poder de abrir algumas portas. A Igreja no Japão enfrenta muitos desafios; quando se é parte de um pequeno grupo, outra tentação é a de enclausuramento, de se dizer: “Vamos permanecer quentes e confortáveis dentro de casa”. Há, no entanto, muito que pode ser feito para contrariar essa tendência. Por exemplo, abraçar os estrangeiros. Quando falamos da Igreja “japonesa”, muitos japoneses têm a ideia que é a Igreja dos japoneses, mas essa percepção está errada…
CL– Esta diversidade ficou, de resto, bem patente na Eucaristia que o Santo Padre celebrou no Tokyo Dome, na presença de muitos católicos filipinos, vietnamitas ou nipo-brasileiros. Se não estou em erro, são já mais que os católicos japoneses propriamente ditos…
P.J.C.H.– É provável que sim. Não sabemos muito bem quantos são. Essa é uma das razões pelas quais devemos agir. A própria Igreja nunca os contou muito bem. Isto é um sinal claro de que muitas pessoas não estão conscientes de que mais de metade dos fiéis está nessa posição. Eles não são apenas parte da Igreja no Japão, são a própria Igreja e nós temos de ouvir o que têm a dizer. Eles também têm muito a oferecer. Penso que a celebração no Tokyo Dome foi magnífica por causa disso. Foi muito colorida e internacional, e é isto que é a Igreja no Japão. Tanto os sacerdotes como as pessoas nas bancadas eram oriundos de locais muito distintos. Havia filipinos, havia vietnamitas. Foi uma missa muito internacional. Agradou-me muito por causa disso. Acredito também que abriu os olhos a muita e boa gente. Por outro lado, é do Papa Francisco que estamos a falar. Ele é como Jesus Cristo. Exige que partamos ao encontro dos outros. Estes dois aspectos – transmitir esperança e dizer à Igreja para abrir as portas, para não ter medo de quem pensa de forma diferente e para não se tornar uma seita – foram uma bênção para a Igreja.
CL– O Papa Francisco incluiu Nagasaki, cidade de mártires e de martírio, na deslocação que fez ao Japão. A sombra do martírio paira sobre a Igreja no Japão praticamente desde os seus primórdios. Como é que este aspecto influenciou o desenvolvimento da Igreja no País?
P.J.C.H.– O martírio é uma realidade que não é propriamente fácil de entender. A própria fé é difícil de compreender. Bem, há quem entenda o martírio como uma forma de fanatismo. Mas há também quem adopte uma posição diferente e considere os mártires como um tesouro da Igreja. É um tesouro de tal forma valioso que nem sempre é fácil compreendê-lo. Para algumas pessoas, pregar as virtudes do martírio é algo que não favorece a Igreja. Há uns anos, a Igreja canonizou uma série de novos mártires e eu lembro-me de ter participado em algumas reuniões em que ouvi católicos defender: “Não, não. Já temos mártires que chegue. Isto é algo que dá uma má imagem à Igreja”. E, de certo modo, é verdade. Sempre fui a favor da elevação destes mártires às honras dos altares, mas alguém que não seja uma pessoa de fé nunca vai entender por inteiro a relevância do martírio. Para eles, a maior parte das vezes, um mártir é apenas alguém tão fanático que desperdiçou a própria vida, particularmente agora que as pessoas se sacrificam por nada. É muito difícil entender o martírio. Se fossemos políticos, é provável que nos sentíssemos impelidos a dizer: “Bem, vamos esquecer os mártires e tratar de dar uma imagem mais positiva do Cristianismo”. No meu entender, trata-se de uma posição errada. Devemos olhar para as coisas com olhos de fé e dizer: “O Cristianismo também é isto. A Cruz está ali e não devemos ter vergonha dela”. Na minha opinião, os mártires constituem uma grande ajuda, uma vez que podemos afirmar: “Vocês são descendentes destas pessoas. Tenham cuidado”. Não devemos brincar. Não nos devemos tornar políticos. Para nós, para a Igreja, o martírio é um tesouro. No meu entender, se a Igreja no Japão tem algo que a diferencia é precisamente por causa dos mártires. Há uma seriedade e uma profundidade muito próprias, mas as tentações também são muitas. Mas no martírio há algo que nos pode ajudar. Depende sempre da forma como se olha para a questão. Se a sua perspectiva for a de um político, então talvez defenda que o melhor é esquecer os mártires. É possível ouvir estas vozes, mesmo no seio da Igreja. Acredito, no entanto, que devemos olhar para as coisas de forma diferente. Os mártires são um tesouro não só para a Igreja, mas também para a sociedade. Se um dia os japoneses despertarem para outros valores, vão provavelmente compreender que estavam a matar as pessoas erradas.
CL– Foi aluno do Papa Francisco. Como era ele como professor? Como mestre?
P.J.C.H.– Ele era reitor do colégio, responsável pela formação e raramente dava aulas, mas estava encarregado da nossa formação enquanto sacerdotes. Era um pai. É, provavelmente, a melhor palavra que posso utilizar. Entrei para a Sociedade de Jesus quando tinha dezoito anos e vim para o Japão aos 26. Esteve sempre lá quando aprendi o essencial da minha formação, enquanto cresci e cometi uma série de erros. É uma pessoa de quem nos podemos aproximar com muita facilidade, plenamente convictos de que nos ama. É muito fácil falar com ele, abrir o coração, contar-lhe tudo. Este é um dos aspectos. Por outro lado, é o tipo de pessoa que nos ensina a olhar para a vida, dando ênfase à dimensão espiritual. Como lhe dizia, não é de todo fácil compreender as suas mensagens. Não é um político e também não é alguém que procura vender o Catolicismo. É um homem espiritual. É um tesouro poder encontrar ao longo da vida alguém que lhe possa mostrar o que um católico é verdadeiramente. Enquanto professor, como lhe dizia, é uma pessoa de trato muito fácil, mas foi sempre muito desafiante aprender com ele, porque o Papa Francisco alimentou sempre novas ideias. O Cristianismo é sempre revolucionário e o Papa Francisco compreendeu esse facto. Está sempre a puxar os limites, a ir ao encontro das coisas que as pessoas acreditam que devem ser feitas. Está sempre a ponderar novas ideias e é por isso que muitas vezes é um desafio acompanhá-lo.
CL– É um homem de quem se gosta facilmente. Não é difícil gostar da sua humanidade e da forma como fala ao coração das pessoas. No entanto, são muitas as críticas que lhe são feitas no seio da estrutura da própria Igreja. Francisco é o homem certo para abalar esta estrutura?
P.J.C.H.– Não é fácil afirmar se é ou não a pessoa certa. Podemos compará-lo a muita gente, provavelmente. O que eu sei é que está a conduzir a Igreja ao encontro dos ensinamentos de Jesus Cristo. Não se trata apenas de ser um homem bom; a sua simplicidade, parece-me, é a simplicidade de Jesus Cristo, porque Jesus Cristo agia da mesma forma. Nesse sentido, acredito que é uma verdadeira graça para a Igreja. Se há pessoas melhores que ele, não lhe sei dizer. Pessoalmente, estou muito satisfeito com o Papa Francisco e com a visão que tem da Igreja. Gostava de reforçar a ideia de que não se trata apenas de um homem bom ou de um homem simples. Antes de mais, creio que é um bom discípulo de Jesus Cristo. A simplicidade que ostenta é a simplicidade de Cristo. As críticas que tem vindo a enfrentar lembram-me muito as críticas que sofreu Jesus Cristo. O que os críticos dizem é quase a mesma coisa: dizem que é demasiado bom com as pessoas, que está a quebrar demasiadas regras. Se é disso que se queixam, então acho que estamos com sorte. Sempre senti que a Igreja estava muito inerte. Há muita gente entre nós que não se estava a comportar de maneira cristã. No entanto, fizeram da Igreja a sua casa. Havia neste conforto algo de muito errado. Não estou a criticar os outros porque, para lhe falar verdade, penso que tanto Bento XVI como João Paulo II são santos, mas por alguma razão coube a Francisco conduzir este trabalho. Este abanão é algo bom, no meu entender. Agradeço a Deus por estas críticas. Significa que algo está a mudar e isso é bom. Significa que o Espírito Santo está a trabalhar através do Papa. Uma coisa é ser-se criticado pelos erros que se cometem; a outra são estas críticas sombrias. Mas acredito que seja algo bom, algo que mostra que ele é o homem certo ou está, pelo menos, a fazer as coisas certas.
CL– Dizia que o Papa tem vindo a quebrar algumas regras, a mudar aspectos que tínhamos como adquiridos. Uma das posições mais relevantes foi tomada no recente Sínodo para Amazónia e diz respeito à possibilidade de homens casados poderem vir a ser ordenados sacerdotes. Esta hipótese poderá colocar a Igreja Católica numa rota de mudança como a que se materializou com o Concílio Vaticano II? Vamos testemunhar uma revolução similar?
P.J.C.H.– É apenas a minha opinião pessoal, mas creio que sim. A exemplo do que aconteceu com o Concílio Vaticano II, vai depender em muito das pessoas que seguirem Francisco. Na viagem de regresso a Roma, no avião, foram muitos os que o interrogaram sobre isto, ao que respondeu: “Esse vai ser o trabalho do próximo Papa”. O trabalho do próximo Papa vai ser muito importante. O Papa Francisco está a abrir muitas portas, mas parece-me que quer avançar em conjunto com a Igreja. Não quer ser um herói. Espera pela Igreja em muitos aspectos. Quando foi eleito Papa, perguntaram-me: “No seu entender, o que vai o Papa Francisco mudar na Igreja?”. Na altura respondi: “Bem, posso dizer-lhe o que ele quer mudar, mas não sei se vai conseguir ou se outra pessoa o fará”. Falamos muitas vezes e eu sei mais ou menos quais são as coisas que ele gostaria de mudar no seio da Igreja. No entender de algumas pessoas, está a avançar demasiado lentamente. A meu ver, está a avançar com a Igreja. Não quer tomar decisões sozinho e dizer: “A partir de amanhã, os padres vão poder casar-se”. Está a abrir muitas portas. Esta pode ser uma boa revolução. Espero que seja, mas depende em grande medida do que se segue. Já não é propriamente jovem e há muita gente à espera que abdique ou desapareça, para que possam voltar a fazer o que quer que faziam.
Marco Carvalho, em Tóquio