MIGUEL DE SENNA FERNANDES

MIGUEL DE SENNA FERNANDES, PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DOS MACAENSES, ANUNCIA MISSA EM PATUÁ NA IGREJA DE SÃO DOMINGOS

«A religião continua a ser fundamental para os macaenses»

A 19 de Dezembro, a igreja de São Domingos vai ter missa totalmente cantada em Patuá. A Eucaristia, a primeira do género dinamizada em quase duas décadas, é da responsabilidade do grupo Dóci Papiaçám e combina dois traços fundamentais que concorrem para a afirmação da identidade dos macaenses: uma língua própria e a resiliência para se manterem católicos numa terra maioritariamente budista. Presidente da Associação dos Macaenses e encenador do Dóci Papiaçám de Macau, Miguel de Senna Fernandes em entrevista a’O CLARIM.

O CLARIM– Patuá, minchi e São João. A discussão em torno do que ajuda a definir a identidade macaense dá pano para mangas, mas há três aspectos que, numa perspectiva mais cultural do que antropológica, se continuam a prefigurar como muito importantes: uma língua própria, uma gastronomia própria e esta capacidade para se manterem católicos numa terra maioritariamente budista. O aspecto da religião, continua a ser um factor distintivo? Ou não?

MIGUEL DE SENNA FERNANDES– Continua a ser, claro. Vários dos critérios que outrora ajudavam a definir a identidade macaense deixaram de funcionar. Apesar desses critérios já não terem o peso que tinham outrora, as pessoas ainda se sentem macaenses. Eu passo a exemplificar: durante muito tempo considerava-se que para se ser macaense, era necessário falar Português. Hoje em dia, a abordagem é quase a contrária. Há macaenses que já não falam Português – ou o Português já não é a sua língua principal – por várias razões, seja por razões históricas ou por razões pessoais. No entanto, as pessoas continuam a arrogar-se a uma certa identidade que não se confunde com o serem chineses ou com o serem portugueses. Vários critérios deixaram de funcionar como critérios fundamentais, mas a religião continua a ser uma constante. Embora Macau seja uma terra de fusão em todos os aspectos da nossa vida e as crenças religiosas se misturem, a religião continua a ser fundamental. A maior parte dos macaenses são católicos. Nascem e são baptizados como católicos, durante a sua vida podem abraçar esta ou aquela crença, mas normalmente morre-se católico e recebe-se sempre a Extrema Unção. Isto é uma característica muito peculiar entre os macaenses.

CL– A ideia que transparece é que uma boa parte dos macaenses não só são católicos, como vivem a fé de uma forma muito rigorosa…

M.S.F.– Em Macau não temos dúvidas: Macau é uma cidade muito pequena e as pessoas continuam a estar referenciadas à sua paróquia e mesmo que na sua paróquia já não haja missas em Português, vão para as igrejas onde essas missas existem. É por isso que na Sé – ou que na igreja de São Domingos agora – há tantos macaenses que acorrem às missas, por exemplo. No dia 19 de Dezembro, o “Dóci Papiaçám” vai cantar na missa que se realiza na igreja de São Domingos…

CL– É quase o reatar de uma tradição… Ao fim de quantos anos?

M.S.F.– Ao fim de vinte anos. Por ocasião do Natal, nós já não cantamos na igreja de São Domingos há vinte anos. Vamos agora repetir a façanha. Mas isto serve para dizer que os macaenses, em Macau, não perderam esta ligação à Igreja. Vemos este fervor, vemos esta paixão por ocasião da procissão de Nosso Senhor dos Passos, por exemplo. A procissão é cumprida com um rigor brutal. Depois temos a procissão do 13 de Maio. Os macaenses vivem todas estas grandes procissões com muita paixão. Eu não sou praticante. Pratico o Catolicismo à minha maneira e que é um tanto ortodoxa. Fujo um pouco à regra, mas não obstante sinto que há algo comum entre eu e eles. E este algo comum radica na fé. A percepção da fé difere de pessoa para pessoa e há muitos macaenses que não querem perder tempo com questões existencialistas e preferem seguir a prática que lhes é ensinada pela Igreja.

CL– De onde veio este desafio para voltar a cantar em Patuá numa cerimónia religiosa tantos anos depois?

M.S.F.– Olha, é uma boa pergunta. Surgiu num repente. Assisti, recentemente, a uma missa de exéquias de um familiar meu que faleceu. Essa missa decorreu no primeiro dia depois da missa ter sido transferida para a igreja de São Domingos por causa das obras que estão em curso na Sé Catedral. Pus-me a recordar os bons momentos que passámos nesta missa. Aliás, foi em duas missas. A primeira vez que cantámos foi, para mim, um acontecimento cheio de significado. A primeira vez que cantámos foi no dia 19 de Dezembro de 1998, precisamente um ano antes da transferência de poderes. Havia um sentimento misto, quase em jeito de despedida. Havia muito sentimentalismo envolvido nisso. A segunda vez que cantámos foi no ano 2000, no dia 24 de Dezembro, na Missa do Galo. Uma Missa do Galo foi preparada para isto. Claro que recebemos algumas críticas por parte da Diocese, porque havia um certo receio de que pudéssemos estar a roubar a clientela à missa da Sé, porque em ambas as ocasiões a igreja estava cheíssima. A missa do dia 19 de Dezembro, foi muito engraçado porque foi o próprio bispo – na altura o bispo era D. Domingos Lam – quem celebrou a missa. Ele não era para estar presente, mas chegou nesse dia a Macau e fez questão de celebrar essa missa. Fez questão de celebrar a missa e ficámos muito contentes. Na Missa do Galo, como era óbvio, não foi possível porque ele iria presidir à Missa do Galo. Não obstante, volvidos vinte anos, estamos dispostos a repetir esta experiência. É claro que essa não é a razão principal, mas é algo subjacente. No fundo é a demonstração de uma certa resiliência.

CL– A Associação dos Macaenses tem, nas suas instalações, um altar dedicado a São João, a exemplo do que foi durante muitos séculos uma tradição do antigo Leal Senado de Macau. É uma presença incontornável?

M.S.F.– Sem dúvida, sem dúvida. Macau ficou inexoravelmente ligado a esta figura, que se crê ter abençoado a cidade contra uma tentativa holandesa de ocupação. Se os portugueses ganharam ou não ganharam, isso não interessa. Importa a tradição que se criou à volta desta figura. E esta tradição é um aspecto que evoca história, que evoca todo um passado. Evoca toda uma ambiência que perdurou durante séculos. Temos conseguido celebrar o São João até agora e só foi interrompido este ano, por causa do Covid-19. Vamos ver se no próximo ano continuamos a ter arraial, porque para isto é preciso dinheiro. Vamos ver se haverá fundos para que isto aconteça…

CL– Há o receio de que esta crise possa afectar o trabalho desenvolvido por associações como a Associação dos Macaenses?

M.S.F.– Claro. Claro, é evidente. Todas as associações – tipo ADM, Casa de Portugal e outras – vivem fundamentalmente do subsídio que vem do Governo. Isto há que dizê-lo. Sem este subsídio não haverá associações nenhumas em Macau. Isto não tem nada a ver com o espírito associativo ou com outros aspectos. É a possibilidade material para que o movimento associativo seja possível. Se o Governo adoptar determinadas medidas que tornam as actividades absolutamente impossíveis, sem estabelecer qualquer tipo de diferenciação, na prática pode tornar muito difícil a concretização dos fins estatutários.

Marco Carvalho

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