«A história de Macau e a história da religião em Macau caminham de mãos dadas»
As expressões religiosas e a Fé Católica têm um peso equiparável ao Patuá e à Gastronomia na definição da identidade macaense. Quem o diz é Mariana Pinto Pereira. A investigadora, que nasceu e cresceu em Macau, argumenta que manifestações como as procissões ou as festividades religiosas são uma expressão fundamental de cultura e identidade. Formada em Arqueologia pela Universidade do Porto e a ultimar os estudos de Doutoramento na Universidade de Cambridge, Mariana Pinto Pereira, “maquista chapada”, em entrevista a’O CLARIM.
O CLARIM – O Patuá e a Gastronomia são muitas vezes apresentados como elementos essenciais do ser e do sentir macaense, mas a Mariana coloca o Catolicismo no mesmo patamar. A Fé Católica é também uma marca da identidade macaense?
MARIANA PINTO PEREIRA – Eu acho que sim. É uma marca de identidade, independentemente de as pessoas serem católicos, “praticantes” ou não. Grande parte das famílias tipicamente macaenses continuam a ser “praticantes”, mas, na minha opinião, o que temos agora vai um pouco mais além: é as expressões religiosas tipicamente macaenses a serem também consideradas, fundamentalmente, uma expressão de cultura e de identidade. A Religião Católica continuar a ter um papel fundamental, porque faz parte de um leque de características que continuam a estar associadas a Macau – e não só aos macaenses, é preciso frisar. Mas também porque continua a ser algo que junta a comunidade. Eventos como as procissões ou festas religiosas são cada vez mais importantes e as pessoas apercebem-se disso. Há muitos macaenses que vêm a Macau de propósito para as procissões.
CL – Tem feito no Instituto Cultural um trabalho importante, o qual tem ajudado a proteger, de forma institucional, o património de matriz católica de Macau…
M.P.P. – Sim. Assim que se reconhece de forma um bocadinho mais oficial e que se coloca o nome das procissões, nem que seja no inventário dos bens imateriais de Macau, há de certa forma uma constatação oficial, que faz também com que as pessoas se sintam mais à vontade para praticar a sua fé, para fazer parte das procissões, para se voluntariarem. Abre também um espaço para que possamos mobilizar outras comunidades, como é o caso da comunidade filipina – uma comunidade extremamente devota e quem tem prestado imenso apoio ao que eram tradicionalmente celebrações mais macaenses. Acho que é cada vez mais fundamental esse reconhecimento, até porque se faz acompanhar quase como que por um convite para se abrir estas celebrações a outras comunidades. Estas comunidades, na minha perspectiva, vão começar a ter cada vez mais importância no que será um Macau muito mais multicultural do que nós pensávamos, porventura, que Macau pudesse ser. As procissões e as celebrações de cariz religioso são fundamentais e estou convicta que vão continuar a ser fundamentais.
CL – Dizia, à margem desta entrevista, que as festas religiosas são uma parte incontornável da vivência maquísta, mas argumentava que o São João é a mais macaense das festividades…
M.P.P. – No meu entender, sim!
CL – Para além da componente religiosa, a Festa de São João tem a si inerente uma componente histórica, com um cariz quase fundacional…
M.P.P. – Um bocadinho. É quase. Mas não podemos separar a componente religiosa da componente histórica, principalmente em Macau. Macau teve um papel de relevo em termos de missionação. O papel de Macau na disseminação da Fé Católica foi fundamental. A Religião Católica acaba por determinar a própria estrutura urbana da cidade e ainda hoje há vários bairros que têm o mesmo nome que a igreja à volta da qual cresceram. A história de Macau e a história da religião em Macau caminham de mãos dadas, não podem ser separadas. Na minha perspectiva, o São João é uma festividade extremamente macaense, precisamente porque tem esse tal cariz militar e histórico, mas também porque é algo que faz parte de Macau desde a sua génese. Porquê o São João? Porque a vitória contra os holandeses foi associada à devoção a São João, o que indicia que a Festa de São João já era celebrada em Macau antes de 1622. A relação entre religião e história não pode ser separada. São dois aspectos que se complementam e que apresentam visões diferentes do que é algo muito mais holístico, muito mais vasto.
CL – As próprias entidades responsáveis pela organização do Encontro das Comunidades Macaenses têm tido esta componente religiosa em atenção. Na terça-feira, o bispo D. Stephen Lee celebrou Missa na Sé Catedral e deu as boas-vindas aos macaenses na diáspora. É também um reafirmar dessa componente identitária?
M.P.P. – Eu acho que é. Aliás, não é só um reafirmar. Os macaenses são livres de escolher o que querem em termos de religião, mas acho que é importante esta manifestação pública de fé. Geralmente, as famílias macaenses são muito abertas a vários tipos de vivência religiosa, tanto que comemoram várias festividades chinesas. Uma parte fundamental das famílias macaenses comemora o Ano Novo Lunar. Manter a parte da Missa não é necessariamente dizer que os macaenses são apenas católicos. A componente macaense inclui uma série de práticas e de crenças que são um reflexo do que foi a gesta dos Descobrimentos. Nesse sentido, a Missa representa muito mais do que apenas a afiliação religiosa. Representa muito mais do que isso.
CL – Que desafios se colocam à comunidade macaense, de Macau e da diáspora, em termos de identidade? O esmorecimento progressivo da identidade macaense é um mal inevitável, ou a comunidade macaense está cá para durar?
M.P.P. – Eu acho que sim. Em 2001, dois anos depois da transferência de administração, os presidentes das Casas de Macau espalhadas pelo mundo juntaram-se, para redefinir, de forma não oficial, o que se entende por macaense. E chegou-se ao entendimento de que a palavra “macaense” deve abarcar os que nasceram fora de Macau e vêm Macau como o seu centro de referência. Foram dados passos há mais de vinte anos para que a comunidade se possa adaptar à realidade da sua Macau. Eu acho que os macaenses sempre se adaptaram. Essa questão da identidade ser fixa e ter parâmetros fixos nunca existiu. É flexível. Felizmente, hoje em dia há muito mais abertura no que toca à definição de quem é ou não é macaense. No passado, prestava-se muito mais atenção à parte portuguesa. Hoje em dia, e ainda bem, estamos a olhar também para as nossas raízes chinesas. Estou convicta que vamos conseguir transportar connosco as raízes portuguesas – e quem diz portuguesas, diz de Goa, de Malaca, do Japão – e, claro, chinesas, provenientes de várias zonas da China. Não me parece que a identidade macaense possa esmorecer. Aquilo que antevejo é que nós, como macaenses que somos, nos vamos continuar a adaptar. Vamos continuar a ter uma perspectiva local e, ao mesmo tempo, continuar a alterar as nossas fronteiras de identidade, dependendo do contexto onde estamos. Estamos com a flexibilidade que precisamos de ter. Como a Marisa Gaspar escreveu, “flexíveis como bambu”, mas acho que somos bem mais flexíveis do que isso. Os macaenses sempre foram bons a escolher, a posicionar-se e a mostrar a face que, se calhar, têm de mostrar. O que vimos neste encontro é que há muitos jovens macaenses interessados em manter essa flexibilidade, sem deixar nada para trás.
Marco Carvalho