O sentido do voto e da democracia.
Numa época em que são cada vez mais os descrentes da política e dos projectos políticos O Clarim foi falar com o constitucionalista Joaquim Gomes Canotilho sobre o voto e a democracia, ou, melhor dizendo, o que resta de ambos.
O CLARIM – Num dos seus últimos livros José Saramago faz, de certa forma, um “apelo” ao voto em branco. Acha essa a arma ideal a utilizar pelas pessoas para demonstrar o seu desagrado, repúdio até, pelo poder político actual?
JOAQUIM GOMES CANOTILHO – O voto em branco foi um dos temas que levei, aqui há uns anos, a um seminário de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nova de Lisboa, a pretexto dum caso que era o do referendo francês sobre a redução do tempo de mandato presidencial de sete para cinco anos. Nesse referendo houve 70 por cento de abstenções, e depois uma maioria a favor do referendo, que era, de facto, um minoria. Os seus autores, a pretexto disso, desenvolveram estudos acerca do voto em branco. Para saberem qual era afinal o sentido dele, o sentido da abstenção e do voto nulo. Chegaram à conclusão que o voto nulo, no fundo, não era nada. Era a simples destruição do voto. A abstenção era, digamos, a desistência do cidadão na participação. No que se refere ao voto em branco, apesar de tudo, era um voto activo, porque levava as pessoas às urnas. Quanto a mim recorrem ao voto em branco grupos que já não se identificam com o sistema político. Grupos que se dedicam a outro tipos de actividades, ao serviço da paz, ao serviço dos necessitados, dos doentes. Não se sabe bem qual o nível etário e social dos seus protagonistas. Se são velhos, se são jovens. Se são pobres, se são ricos. Há que fazer estudos mais desenvolvidos e fundamentados. Mas se me pedir a opinião eu não aconselharia em caso algum o voto em branco. Temos é de escolher direcções políticas e o voto em branco propriamente não escolhe.
CL – Acha, como o escritor, que “a democracia está a suicidar-se todos os dias”? Qual será o verdadeiro poder dos “poderes opacos” que estão por detrás desta ilusão de democracia?
J.G.C. – A democracia, como diria um autor clássico, é plesbicito de todos os dias, e, portanto, considero que nós temos é “obrigação de não contribuirmos para um grande desencanto em torno das formas de participação política, porque só quando ela não existe é que veremos que afinal é um bem importante mesmo que insuficiente”. A ideia que eu tenho é de que deveremos complementar a democracia representativa, a democracia estabelecida com outras formas de animarmos discussões… Em Coimbra, por exemplo, participei na fundação de uma república do Direito para vermos como é que estava o Direito da República. Foram convocados ministros, o Presidente da Républica, outras pessoas, não apenas juristas mas também médicos, militares… Participei num colóquio sobre a cidadania de um cidadão que se chama José Dias e que promove todos os anos dois, três encontros. Acho que é possível, através de processos vários, manter uma certa vigilância democrática, uma certa participação e preparar os cidadãos jovens para um exercício mais autêntico da democracia, e não estarmos apenas a criticar ou advogar até a destruição da democracia. Nesse aspecto penso que o José Saramago é antropologicamente pessimista. Eu, por outro lado, continuo antropologicamente mais optimista.
CL – Aqui há tempos, em Macau, um académico de Hong Kong defendia a existência de um sistema político democrático não multipartidário, certamente referindo-se à China, onde muito dificilmente será imposto, algum dia, um sistema democrático como nós o concebemos…
J.G.C. – Acho que neste contexto há que ter em conta a diversidade de realidades. Temos por um lado a China, por outro Hong Kong com partidos políticos e ainda o microcosmos que é Macau. Trata-se no fundo de saber até que ponto, sem a existência de organizações políticas definidas nos quadros clássicos, poderá haver pluralismo social e pluralismo político que faça as vezes dos esquemas partidários. Eu hoje tenho bastante dificuldade em imaginar a canalização da vontade política sem a existência de partidos. Os existentes ou outros. Porque estas organizações de que lhe falei, em que gente participa, não me parece que, em determinadas alturas em que é necessário mobilizar eleitorado, tenham organização suficiente para agitar em termos políticos os cidadãos. E nesse medida, eu digo-lhe é possível, até porque nunca se pode dizer que outros cenários são insusceptíveis de aparecer na cena política, mas em termos dos meus quadros mentais, hoje, penso que nós construimos a democracia com partidos.
CL – Trabalha muito em parceria com Vital Moreira…
J.G.C. – A colaboração surgiu naturalmente, e a este propósito há um episódio que pouca gente conhece. Tinhamos feito, como sabe, um comentário à Constituição. Mas quando se levantou a questão do editor, pensei num amigo que tinha publicado os meus livros, o Joaquim Machado da Livraria Almedina. Mas ele receou que aquilo pudesse ser um comentário comunista da Constituição. Enfim, temia que houvesse apenas ideologia marxista-leninista e não propriamente anotações jurídicas. Perante essa atitude fomos ter com uma outra editora, a Coimbra Editora, que tinha editado a minha tese de doutoramento e que de imediato aderiu ao projecto. Posteriormente o Machado da Almedina perguntou-me se eu não queria voltar à editora dele. Disse-lhe que não. Nem que me desse todo o dinheiro do mundo não me transferia da Coimbra Editora para a Almedina. Não porque estivesse zangado com ele, mas simplesmente porque ele não acreditou e os outros acreditaram. Há valores da vida que são incontornáveis. Um deles é o de sermos fiéis.
Joaquim Magalhães de Castro