«Transferência foi lição para o mundo»
A Companhia de Electricidade de Macau é fruto da Administração Portuguesa, mas soube adaptar-se aos novos tempos, diz o engenheiro João Travassos, ao recordar o percurso da concessionária antes e depois de 1999. A’O CLARIM refere que a transferência de poderes foi uma lição de civismo e respeito mútuo dado por Portugal e pela RPC ao mundo. E garante que Macau teve influência na entrada da China Three Gorges no capital social da EDP.
O CLARIM – A CEM foi fundada no tempo da Administração Portuguesa e passou incólume ao período da transferência de poderes. Estamos perante um caso de sucesso?
JOÃO TRAVASSOS – A MELCO, empresa que antecedeu a CEM como concessionária de produção e distribuição de energia eléctrica em Macau, estava falida. Por esse facto, em 1972, o Governo do território decidiu adquirir a empresa, reestruturá-la e mudar-lhe a designação para a actual Companhia de Electricidade de Macau. Em 1982 iniciou-se um processo de reestruturação profunda e pela primeira vez, em 1984, a empresa conseguiu interromper mais de vinte anos de prejuízos sucessivos e abandonar esse mau período da sua história. É este facto que me leva a considerar a CEM um caso de sucesso, traduzido numa excelente e sustentada recuperação após um longo período de falência.
CL – Que balanço faz de Macau antes de 1999?
J.T. – Macau, pelas suas características geográficas e sociais, não é fácil de administrar. Se juntarmos o contexto político em que Portugal exerceu a soberania, e a dimensão geográfica e económica dos países directamente envolvidos, percebe-se melhor as razões que determinaram a busca de consensos em que assentou essa administração em grandes períodos da sua história.
CL – Pode concretizar?
J.T. – Conturbados, às vezes trágicos, ficaram na história os tempos em que esses consensos não foram conseguidos. Ao longo de quase 500 anos de presença [portuguesa] houve certamente erros, mas o balanço final é positivo porque temos um território organizado, dotado de boas infra-estruturas, com um sistema jurídico e instituições a funcionar; onde muita da nossa cultura se mantém presente e activa. É tudo isto que dá a Macau uma identidade muito própria, que será muito importante para o seu futuro, como parte integrante da República Popular da China. Além disso, o modo como decorreu a transferência de soberania constituiu uma autêntica lição de civismo e respeito mútuo dada por Portugal e pela República Popular da China a todo o mundo, e da qual todos nos devemos orgulhar.
CL – Está na CEM desde 1984. Que transformações observou após 1999?
J.T. – Um dos grandes problemas de Macau até aos anos noventa foi a falta de quadros qualificados, dado que a Universidade de Macau foi apenas constituída no final da década de oitenta. Esta lacuna foi ultrapassada com a vinda de técnicos de Portugal, muitos deles provenientes da EDP, mas também de outras empresas, como os CTT. À medida que o mercado local começou a dispor de quadros qualificados a CEM intensificou a contratação de jovens. Graças a esta estratégia, mesmo antes de 1999 a empresa pôde, sem convulsões nem diminuição da qualidade do serviço prestado, começar a reduzir o número de expatriados, substituindo-os por quadros locais, que ficaram integrados em todos os níveis da empresa. O actual presidente da Comissão Executiva [Bernie Leong] é um desses elementos que foram admitidos há mais de vinte anos.
CL – Que preocupações?
J.T. – Há uma alteração significativa no pós-1999 que nos preocupa: a transformação de uma empresa que era auto-suficiente em matéria de produção de electricidade até cerca de 2005, para a situação de grande dependência actual, na medida em que importamos mais de 90% da energia eléctrica consumida em Macau. Esta situação traz-nos grandes preocupações porque limita a nossa possibilidade de intervenção em caso de haver uma grande interrupção em Macau provocada por avaria na rede da “vizinha” província de Cantão, assim como na capacidade de negociação dos contratos de importação.
CL – A EDP Asia é a segunda principal accionista da CEM. Como tem funcionado esta parceria?
J.T. – O envolvimento a EDP na CEM, através da sociedade EDP Ásia, teve efeitos benéficos para ambas as empresas e, sobretudo, para Macau. Para a CEM, porque a vinda de quadros técnicos de Portugal permitiu a sua recuperação e a formação de pessoal competente e muito dedicado. Para a EDP, porque lhe permitiu abrir portas e estabelecer contactos que foram transformados em parcerias e estão a desempenhar um papel muito importante na situação actual da empresa.
CL – Pode especificar?
J.T. – Refiro-me ao facto da China Three Gorges ser hoje a maior accionista individual da EDP. E aqui pode-se levantar uma questão: seria isto possível se a EDP nunca tivesse estado em Macau, não sendo portanto conhecida nesta zona do globo? Provavelmente não.
CL – O que espera do novo Governo da RAEM no que respeita à política energética?
J.T. – Para que Macau seja aquilo que se pretende – uma cidade internacional com uma elevada qualidade de vida – e dado que não dispõe de condições favoráveis à implementação de meios de produção recorrendo a energias renováveis, é importante acompanhar o que melhor se faz no mundo, desde que o binómio custo-qualidade esteja provado.
CL – Que soluções?
J.T. – É importante a instalação de novos grupos de produção de elevada eficiência, utilizando gás natural com reduzidas emissões poluentes. É essencial promover a utilização de motociclos e carros eléctricos, ou híbridos, já que Macau tem condições geográficas excepcionais, e o ambiente assim o exige, sobretudo devido aos gases de escape dos numerosos veículos que circulam pela cidade. É ainda necessário desenvolver uma rede eléctrica inteligente, as chamadas “smart-grids”, que melhoram de forma significativa a eficiência da rede, ao permitir a interacção do cliente com o serviço. Por fim, é importante resolver a questão do fornecimento de gás natural.
PEDRO DANIEL OLIVEIRA