D. DIAMANTINO ANTUNES, BISPO DE TETE

D. DIAMANTINO ANTUNES, BISPO DE TETE, EM MOÇAMBIQUE

«O nosso medo é que esta insurgência se ramifique e se expanda»

Natural de Leiria, é bispo de Tete, em Moçambique, há dois anos. Esteve recentemente em Portugal. Nesta entrevista à FAMÍLIA CRISTÃ fala sobre a situação naquele país de língua portuguesa. Mas sobretudo de Cabo Delgado, onde «a maior calamidade é a guerra» e «o País não se encontra preparado para responder com ou sem cooperação internacional».

FAMÍLIA CRISTÖ Consegue-se perceber o que causa os ataques em Cabo Delgado? É apresentada como uma guerra religiosa, mas depois vamos percebendo aqui e ali que se calhar os contornos não são bem esses, não é?

D. DIAMANTINO ANTUNES– Tudo começou com uma motivação religiosa. Os insurgentes identificam-se com este radicalismo islâmico e pensa-se que há ligações ao [autoproclamado] Estado Islâmico ou Daesh, na sua componente africana, da África Central. De facto, os jovens quando fazem os seus ataques invocam sempre o nome de Deus. Mas há outras causas que alimentam a insurgência e lhe dão força. Razões internas e externas também. Internas, sem dúvida, um certo mal-estar que há entre a população daquela região que já era pobre no sentido de um certo abandono já histórico e perante um contexto em que sabem que nas suas terras existem riquezas grandes, grandes reservas de gás natural. Consequentemente as pessoas anseiam melhorias das suas condições de vida, sobretudo entre os jovens que são a maior parte da população moçambicana, são aquela que é mais afectada pela crise, pela falta de oportunidades, de emprego. Este movimento tem meios e consegue facilmente aliciar uma juventude que é pobre, carente de esperança e que vê na violência talvez uma maneira de protestar. Em África e nos países pobres, as riquezas são muitas vezes a desgraça da nação, porque são disputas de cobiças e também há uma motivação económica. Ou não se perceberia como é que este conflito se circunscreve à região onde se está a fazer prospecção para o gás natural. Possivelmente há interesses internacionais que levam ou a desvalorizar os recursos ou a tentar uma concorrência desleal. Talvez haja uma vontade de danificar este negócio que é uma grande potencialidade para Moçambique. A riqueza ali produzida, os dividendos da estação do gás natural, sem dúvida são importantes para o País. Estamos a falar de milhões e milhões de dólares que o País precisa para gastar num orçamento anual e também para desenvolver a região.

F.C.– Milhões de dólares que podem não estar a ir parar às mãos de quem deve?

D.D.A.–Neste momento, é fase de prospecção. Os dividendos para a população demoram mais tempo a chegar. Mas há uma certa impaciência… O nosso medo é que esta insurgência se ramifique e se expanda a outras províncias onde há uma população maioritariamente muçulmana. Há esse risco e seria um agravar da situação. O Estado moçambicano está impreparado do ponto de vista militar, estratégico, para responder a uma guerrilha, a uma insurgência militar que está muito motivada, bem treinada, bem armada. É uma guerra de guerrilha, onde precisa de mais homens no terreno, mais preparados. O que notamos é que são jovens que combatem outros jovens, mas menos preparados, menos motivados.

F.C.– Vê-se um Estado impreparado, mas também com pouca vontade de pedir ajuda para essa preparação.

D.D.A.–Eu penso que a solidariedade inter-africana, ao nível da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral deveria ajudar ou colaborar com as forças militares moçambicanas para combater esta insurgência. A presença de tropas não-africanas é vista como uma certa ingerência. Mas, no contexto actual e perante a situação grave, talvez fosse a melhor alternativa, porque sem recursos…

F.C.– São conhecidas experiências de capacetes azuis noutros países e Portugal tem participado…

D.D.A.–Se fosse uma força conjunta patrocinada pelas Nações Unidas teria maior eficácia e talvez melhor recepção. Vê-se da parte das autoridades uma falta de percepção inicial da realidade e da gravidade desta insurgência. Não se olhou logo como uma força que gradualmente poderia ter aquela capacidade militar que está a manifestar de atacar centros estratégicos e colocar em risco investimento que é muito importante para Moçambique.

F.C.– Há quem comente que a intenção seja desertificar a zona para facilitar a exploração e prospecção. Acha que há esse risco de estes deslocados nunca mais terem condições para regressar a casa?

D.D.A.–Deixar a sua própria terra, onde sepultaram os seus antepassados, onde já tinham uma vida organizada, para um outro lugar cria sempre incómodos e insatisfação. Caso esta insurgência seja vencida, e esperemos que sim, não é automático que as pessoas voltem logo aos seus lugares de origem, porque há uma certa desconfiança, um certo temor. Vai ser necessário um tempo de ganhar confiança. Esta situação de milhares e milhares de deslocados, setecentas mil pessoas, é um drama humanitário que durará ainda por bastante tempo. Agora há ainda essa consciência da comunidade internacional de ajudar. Mas se se prolonga a situação por muito tempo, esse interesse da parte da comunidade internacional irá diminuir e consequentemente as condições de vida das pessoas, o seu dia-a-dia tornar-se-á muito mais difícil. Estamos a falar de um êxodo quase bíblico que, de um momento para o outro, levou cerca de vinte por cento da população desta província, que tem dois milhões e meio de habitantes, a fugir para Pemba ou outras províncias vizinhas como Nampula, Niassa e também Zambeze.

F.C.– D. Diamantino já tinha falado algumas vezes de problemas. D. Luiz Fernando Lisboa, de Pemba, tornou-se uma voz muito importante. Parece que só depois os restantes bispos moçambicanos foram atrás. Havia algum receio da parte dos bispos?

D.D.A.–Eu acho que não é tanto de receio. É falta de percepção da realidade. Aliás, a mesma dificuldade teve o Governo. Não se pensava. Era uma realidade muito distante, residual praticamente. Surgiu no contexto de outras calamidades que assolaram Moçambique. É evidente que não digo que deixámos o D. Luiz sozinho na denúncia. Acompanhámos. Mas talvez um pronunciamento colectivo em nome de toda a Conferência Episcopal em vez de o D. Luiz se expor a nível independente… Quando uma Conferência Episcopal fala tem outra força e outra garantia que não tem quando um bispo fala individualmente. A experiência da Conferência Episcopal que em tempos da guerra civil manteve uma unidade, uma voz comum, foi importante para denunciar a guerra e também para conseguir uma via de solução da guerra que foi o diálogo. Talvez nos faltou essa experiência e agora penso que já todos sentimos o problema. Já não é um problema de uma diocese, de um bispo. É um problema nacional. Hoje já se fala do problema a uma única voz e com mais peso. Tenho muita consideração pela coragem e pela determinação do D. Luiz Fernando Lisboa, que não calou o clamor da situação, sendo acusado de alarmismo, às vezes até de colaboração com esta insurgência, evidentemente sem fundamento.

F.C.– Parece-lhe que esse caminho de uma voz una pode ajudar o Governo moçambicano a tornar-se mais eficaz no combate à situação?

D.D.A.–Eu penso que sim, porque a autoridade moral da Igreja vai muito além daquilo que é a sua expressão numérica. E tem a vantagem de ser uma voz neutral. Não está ligada a nenhum partido político e procura sempre o bem comum e depois também já há experiência e tradição de magistério social a respeito sobretudo da promoção da paz, democracia e desenvolvimento. Eu penso que é necessário esse diálogo. A Igreja tem de dar o primeiro passo e procurar sempre criar pontes com o Governo, mesmo que observe da outra parte uma certa frieza ou uma certa retracção. Penso que se está a chegar a um ponto de convergência e diálogo. O Governo sozinho não conseguirá resolver este problema, nem com a colaboração internacional. Aqui também é muito importante o papel das religiões. A religião em Moçambique, após a independência, não foi motivo de divisão, de conflito. Houve sempre ecumenismo, diálogo inter-religioso natural e em colaboração. Para resolver este problema o Governo tem de ouvir mais as igrejas, as religiões, o Islão. No fundo no fundo, é um problema religioso, mas não é. É um problema dentro do próprio Islão, porque sabemos que o Islão moçambicano é tolerante. E este Islão mais intolerante, mais agressivo, com conotações políticas, é fruto de ideias que estão a chegar. Há uma certa radicalização que vem do exterior. Não digo que sejam só muçulmanos que vêm do exterior. Mas naturalmente muçulmanos que foram estudar no exterior e vêm com uma ideia diferente ou com uma atitude diferente em relação ao Islão moçambicano, até contrariando, criticando e, por vezes, até entrando num certo choque.

F.C.– É possível ver um fim a isto?

D.D.A.–Eu penso que sim. Eu acho que o Governo está nessa linha e é preciso que assuma a situação em Cabo Delgado como a prioridade das prioridades. Esta guerra, embora localizada, afecta todo o País. Afecta a confiança, a estabilidade económica e os recursos naturais dos quais o País precisa para poder fazer face às suas necessidades. Será resolvido na medida em que o Governo se empenhar e ver aquele problema como problema real que tem as suas causas e combater as suas causas. E fazendo também pela colaboração internacional. Advogar apenas soberania por soberania pode fazer com que a curto prazo essa soberania vá diminuindo. Esperemos que não se volte a assistir àqueles ataques violentos imprevistos que têm causado muitos danos e sobretudo muito terror entre a população que viu pessoas serem mortas de modo muito violento. Espero a Paz, porque o País precisa de paz.

RICARDO PERNA

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