«Não estou surpreendido com o desenvolvimento de Macau».
Três décadas após os acontecimentos, António Nobre desmistifica a governação de Almeida e Costa em Macau. Embora polémico, foi um homem de coragem, não oferecendo de mão beijada o aeroporto aos interesses estrangeiros, afirma o ex-ajudante de campo do então Governador, que também não está surpreendido com o exponencial desenvolvimento da RAEM. A’O CLARIM lembra a amizade com Ho Yin e elogia o general Ramalho Eanes, de quem conta um dos muitos episódios reveladores da sua incontestável honestidade.
O CLARIM – Serviu o Governo de Macau entre 1981 e 1986, durante a Administração de Almeida e Costa. Como descreve esse tempo?
ANTÓNIO NOBRE – A situação política era muito complicada. Havia facções mais ou menos distintas, embora uma predominasse: a ADIM [Associação para a Defesa dos Interesses de Macau] de Carlos d’Assumpção, com ligação ao CDS [de Portugal]. Almeida e Costa tinha muito para fazer quando cá chegou. Uma das tarefas mais importantes foi o desenvolvimento das Comunicações, sobretudo para Macau poder dar um impulso à sua economia e atenuar a preponderância de Hong Kong.
CL – Em 1984 aconteceu algo único na história contemporânea do território, com a dissolução da Assembleia Legislativa, em resultado de um conflito político entre Almeida e Costa e Carlos d’Assumpção, então presidente da AL. De que forma viveu a situação?
A.N. – Não sou a pessoa mais indicada para falar sobre a dissolução da Assembleia, pois foram aspectos políticos que contribuíram para que isso acontecesse. Eu vivi a situação como ajudante de campo do Governador. Sou militar e não político. Por isso não devo fazer interpretações políticas. No entanto, quem é desse tempo sabe muito bem que tudo aconteceu por causa das forças políticas de Macau.
CL – E como caracteriza o desempenho do Governador?
A.N. – Almeida e Costa veio para cá a mando do general Ramalho Eanes [então Presidente da República Portuguesa], com a missão de transformar e construir Macau, com o propósito de ombrear com Hong Kong, e também para continuar com as relações chinesas da melhor forma, porque se já eram boas, deveriam ser ainda melhores. Macau não tinha os problemas de Hong Kong. Ou seja, não tinha uma “casa alugada”…
CL – É ponto assente que o território não chegou ao nível de desenvolvimento de Hong Kong…
A.N. – Era muito complicado atingir esse objectivo em três ou quatro anos, mas Almeida e Costa teve a ousadia de tomar certas posições, que foram muito controversas para a sociedade de então. Talvez essas pessoas já não o vejam assim, porque percebem hoje que ele impulsionou determinadas matérias que mais ninguém tinha coragem de pô-las em prática, a não ser ele.
CL – Pode exemplificar?
A.N. – Uma delas foi não ceder a certos interesses estrangeiros, europeus, a troco de Macau ser utilizada como porta de entrada para a China. O aeroporto não foi dado de mão beijada. Almeida e Costa não permitiu isso. A obra não avançou com ele pelo modo como tudo lhe foi proposto.
CL – Esteve depois em Macau entre 1997 e Fevereiro de 2000. Como viu a transferência de poderes?
A.N. – Macau já estava muito diferente e foi muito interessante assistir ao “handover”, embora fosse uma situação que mexesse com o coração dos portugueses. Tudo o que foi feito tinha que ser feito. E acho que foi muito bem feito. A transferência decorreu de forma calma, serena e politicamente correcta. Foi um exemplo, tanto para chineses, como para portugueses ou ingleses. Até hoje, como ninguém pode contestar, as relações continuam a ser exemplares. Já em Hong Kong houve problemas graves com a transferência.
CL – Edmund Ho foi o primeiro Chefe do Executivo da RAEM. Acompanhou a sua governação?
A.N. – Edmund Ho foi uma pessoa com quem me dei maravilhosamente bem. Inclusivamente, interrompi as minhas férias em Portugal para vir ao funeral do seu pai, o senhor Ho Yin. A consideração que o senhor Ho Yin teve para comigo desde a primeira semana em que cheguei a Macau, e a nossa convivência através do senhor Roque Choi, como interprete fiel das conversas, é algo que nunca poderei esquecer na vida.
CL – Macau regista agora um exponencial desenvolvimento, em parte graças à liberalização da indústria do Jogo. Está surpreendido?
A.N. – Não estou surpreendido com o desenvolvimento de Macau. Apraz-me ver que Macau se desenvolveu desta maneira. Tinha que fazê-lo, na medida em que houve um trabalho incrível, permitindo assim que a economia se desenvolvesse mais rapidamente, até porque houve mais dinheiro a entrar nos cofres públicos devido ao “boom” dos casinos. Na altura [década de 80] as negociações entre o Governo de Macau e a concessionária não permitiam que se fosse mais além.
CL – Como é a sua relação com o general Ramalho Eanes?
A.N. – É óptima. É das pessoas mais honestas, mais pragmáticas e com tantos pormenores de honestidade que não caberiam numa entrevista, quanto mais numa resposta. Mas há um que não resisto: no Conselho da Revolução [surgiu após o movimento do 11 de Março de 1975] havia membros que durante as muitas horas de reunião – por vezes terminavam às três ou quatro da manhã – bebiam um whisky dentro da sala de reuniões. Tudo isto foi extinto pelo general Ramalho Eanes, enquanto presidente do Conselho da Revolução, também Presidente da República, permitindo apenas uma simples “Coutada” [aguardente branca] e café fora da sala. O único que tirou partido da situação, na medida em que já o fazia anteriormente, foi o então major Vasco Lourenço [actual presidente da Associação 25 de Abril].
PEDRO DANIEL OLIVEIRA
pedrodanielhk@hotmail.com