PADRE JOÃO LOURENÇO, ANTIGO REITOR DO INSTITUTO INTER-UNIVERSITÁRIO DE MACAU
A transferência de administração de Macau de Portugal para a República Popular da China, há vinte anos, suscitou apreensão junto de vários sectores da sociedade do território e a Igreja Católica não foi excepção. Professor jubilado da Universidade Católica Portuguesa, o padre João Lourenço viveu seis anos em Macau, divididos a meio pelo “handover”. Este acontecimento, diz, trouxe um novo impulso à Igreja Católica, obrigando-a a abandonar o comodismo em que se encontrava instalada.
O CLARIM– Duas décadas depois, que balanço faz do processo de transição?
PADRE JOÃO LOURENÇO– Quero, antes de mais, saudar a RAEM e os seus habitantes por estes vinte anos de experiência autonómica e pelo percurso feito, ainda que tenham existido alguns momentos em que essa identidade específica de Macau poderia ter assumido uma expressão mais significativa, mormente no vincar de uma identidade cultural que reforçaria a sua singularidade e contribuiria para alargar a sua presença no espaço envolvente para além da matriz do jogo e de tudo o que significa entretenimento. Macau é singular e essa singularidade, sendo reforçada, confere ao território uma mais-valia que deve ser valorizada e promovida. Estando no território na altura da transferência de soberania, era perceptível essa apreensão, quer da parte da população de matriz cultural macaense quer dos portugueses aí residentes. Não seria a única preocupação que a Igreja manifestava, mas ela era real. Tudo apontava para um problema que ainda não estava resolvido: o reconhecimento entre a República Popular da China e a Santa Sé. Havia, no entanto, a esperança que a Igreja em Macau pudesse vir a ganhar mais visibilidade e presença para ajudar a desatar esse nó. O envolvimento que algumas personalidades da Igreja em Macau tinham desempenhado no processo de transferência a abertura que se manifestava já na Lei Básica, o cuidado que houve em manter certos traços de matriz católica desde cedo mostravam que as autoridades locais e os negociadores da República Popular da China tinham consciência que o papel da Igreja era para respeitar. A matriz social da Igreja em Macau, a sua dimensão agregadora, muito para além da sua representatividade numérica da população, a cultura e o património católico era um factor diferenciador pela positiva, o que tem permitido a Macau e à Igreja local preservar o seu “status” e até, segundo me parece, valorizar a sua presença, superando hoje tais receios e inquietações. Os receios acabaram, em grande medida, por se revelarem injustificados e a Diocese parece até ter sido investida de um novo protagonismo pelo Vaticano, com a reabilitação do papel do Seminário de São José.
CL– O que pode este protagonismo augurar para o futuro?
P.J.L.– Em termos de Igreja, Macau pode recuperar alguma da centralidade que teve no passado, não já em termos de Padroado, mas sim como um polo agregador e formador de missionários para a região do Sudeste Asiático. Não será tarefa fácil, mas a Igreja em Macau tem recursos materiais que podem impulsionar este objectivo. Por outro lado, tendo o território um ambiente cultural bastante aberto, uma porta entre a matriz da cultura ocidental humanista e a cultura oriental mais individualista e intimista, isso poderá ser um bom contributo que a Igreja pode conjugar. No entanto, importa ter em atenção que isso deve ser feito levando ao envolvimento da sociedade local, como contributo para a valorização da sua singular identidade autonómica.
CL– A própria comunidade católica acabou por se tornar mais plural ao longo dos últimos vinte anos. Foi difícil para a Igreja acompanhar esta mudança no perfil social do território?
P.J.L.– Estando fora, trata-se de uma questão a que tenho alguma dificuldade em responder. No entanto, quando passo pela RAEM – e tenho-o feito com alguma frequência – sinto que há um bom clima eclesial em Macau, apesar das alterações que houve pela chegada de um bispo com outra matriz cultural. Depois de algum tempo de adaptação, a comunidade católica reencontrou o seu ritmo e sinto que está com mais vigor, mais empenho e também com maior pluralidade. Há comunidades nacionais que têm uma forte presença, o que confere ao Catolicismo a sua dimensão universalista de acolhimento e de presença. Mesmo no que se refere a clérigos, designadamente sacerdotes, há hoje uma maior pluralidade de presenças, o que é um óptimo sinal. Parece-me que o grande desafio posto à Igreja é o de se abrir à população chinesa, mormente aos que vão chegando, para lhe oferecer um espaço de acolhimento, que não pode ser apenas material mas também de conforto e estímulo vivencial e espiritual. Deve ser capaz de acompanhar as suas causas e anseios, mormente a dos jovens e adolescentes que estudam nas suas múltiplas instituições de ensino e formação. Este é um instrumento muito importante de que a Igreja dispõe e que importa valorizar.
CL– No âmbito da vida da Igreja no território qual foi ou quais foram para si os momentos de maior relevância durante o período em que teve Macau como casa?
P.J.L.– Para mim, o momento dos momentos que vivi em Macau foi, sem dúvida, a passagem do território para a soberania da China. Senti nisso, apesar de alguma ansiedade local, um impulso novo e um grande desafio à Igreja, capaz de se desinstalar de um certo comodismo e conformismo, para aceitar este grande desafio que era o de se colocar à escuta dos sinais dos tempos e deixar-se motivar pelo que representa o mistério da Encarnação. Ou seja, o de se fazer voz e sinal de Deus numa nova realidade social, política e cultural. Este desafio foi, na verdade, uma forte interpelação. Uns, viveram-na com agrado, com uma certa dose de nacionalismo também; para outros, a mudança foi um tempo de ascese e de crescimento em ordem a uma verdadeira saída da sua zona de conforto religioso. A fé, e por consequência também a Igreja, precisa de sentir este apelo a deixar as suas zonas de conforto para se lançar na construção do Reino de Deus. Sinto-me um privilegiado por ter participado nestes momentos, mesmo que ao início também tenha passados por momentos de dúvidas e de inquietação. Confesso, e não tenho vergonha em dizê-lo, que depressa se dissiparam tais receios e nunca me senti desconfortável na nova situação social e política.
CL– E a maior dificuldade com que a Igreja se deparou? A desconfiança com que é vista a Universidade de São José por parte das autoridades chinesas ensombra ou macula uma relação aparentemente cordial?
P.J.L.– Penso que esse é talvez o sinal mais sensível de alguma desconfiança que possa existir. De facto, a obra da Igreja no campo social e educativo é incontestável. Não é possível negá-la, nem prescindir dela. Já no que diz respeito à formação de uma elite de pensamento, marcadamente alternativo ao “status quo” existente, será sempre objecto de algum receio por parte de uma cultura e de uma sociedade que está marcada, profundamente, por uma ordem estabelecida e por padrões que têm de ser balizados a partir de cima. Embora o território seja pequeno, nunca as instituições gostam de correr esse risco. Embora em Macau o poder de uma instituição como a Universidade de São José seja pequeno, podemos dizer que a simbólica que serve para representar a força do Evangelho – ser fermento no meio da massa – também se aplica aqui no que diz respeito às instituições que estão para lá da Igreja, pois há sempre o risco de o fermento do pensamento poder suscitar novas dinâmicas de vida e de valores.
Marco Carvalho