O regresso à Europa por via terrestre
Após Agra, segue-se Deli. E depois Lahore, a grande cidade dos mogóis. Irrequieto observador, nota Manrique a difícil tarefa de se movimentar na cidade amuralhada, “apesar dos grandes portões”, devido ao número de pessoas que lotam as ruas. Chama a atenção para a grande quantidade de lojas, ou melhor dizendo, “cozinhas nas quais são vendidas carnes de vários tipos”. Estas palavras encontram ressonância quatro séculos depois. Só que hoje habitam o coração de Lahore, em vez de vinte, duzentas mil almas, multiplicando por muito o árduo labor nas cozinhas e nas bancas de rua.
Manrique foi testemunha do banquete cerimonial oferecido pelo governador Asaf Khan a Shah Jahan, pois o imperador mogol estava de visita à cidade nesse ano de 1641. Eis, portanto, decorado o recinto com tapetes cobrindo o solo, “a formar mesas no chão, como é o costume nacional”, além de servirem de “cadeiras e assentos”. Abunda a comida, trazida por um séquito de criados acompanhados por quatro belas moças com recipientes destinados à “ablução das mãos do hóspede real”. Manrique confessa ter ficado espantado com as boas maneiras “desses bárbaros” e com a abundância e diversidade de pratos, alguns ao estilo europeu, pois já então se sentia a influência lusitana na culinária local. Destaca Manrique certos “pastéis, bolos e outros doces feitos por alguns escravos que estiveram com os portugueses”.
Manrique empenhar-se-á depois em tentar obter a libertação de vários prisioneiros lusitanos, entre os quais um tal padre António de Cristo. Chega mesmo a interceder junto de Asaf Khan nesse sentido. E nesse contexto conhece um jesuíta ali residente, o padre José de Castro, que lhe fala de um famoso joalheiro veneziano, “chegado à Índia nos navios portugueses”, que morrera no ano anterior quando se dirigia de Agra a Lahore. Trata-se de Geronimo Veroneo, a quem Manrique não hesita em atribuir a autoria do projecto do Taj Mahal, pois além de joalheiro Veroneo era arquitecto. Esta teoria, como seria de esperar, não encontrava apoio local, causando até algum mau-estar. Inconcebível, para os habitantes da região, ser tal obra prima da arte indiana engenho de um europeu! Fontes persas coevas são ricas em detalhes acerca do processo de construção do Taj Mahal e trazem à baila os nomes de vários artistas e artesãos, sem nunca mencionarem o tal arquitecto de Veneza… De resto, todos os viajantes europeus que passaram por Agra naquela época lembravam-se de Veroneo apenas como um joalheiro “com grande habilidade para criar peças de ouro curiosas”.
Em Multan, a cidade seguinte no mapa da jornada “manriqueana”, o funcionário da alfândega bloqueia o caminho exigindo ao agostinho impostos que ele não podia pagar. Regressará, pois, o nosso sacerdote a Lahore. Navegando pelo Indo abaixo, Manrique faz um longo desvio pelo Rajastão, aproveitando para visitar a bela Jaisalmer. Já então adoptara a vestimenta dos mogóis, disfarçando-se de mercador para assim não ter problemas de maior no caminho. Após comprar uma cáfila de camelos, que planeava revender em Isfaão, o frade portuense atravessa desta vez o vale do Indo rumo ao Sul do Afeganistão, passando por Quetta e Kandahar antes de, após longa travessia, atingir os domínios dos persas safávidas. Em Isfaão contará com o apoio dos monges agostinhos que ali possuíam um convento e que à época estavam nas boas graças de Shah Abbas, aliado pontual da monarquia dual ibérica contra esse inimigo comum denominado império otomano.
Sebastião Manrique levará 53 dias a atravessar a Pérsia e, uma vez em Bagdade, visitará as ruínas da Babilónia, desdenhosamente descritas por ele como um “aglomerado de ladrilhos”. Manrique juntar-se-á depois a uma caravana com destino à Síria, enfrentando um terrível deserto antes de chegar a Damasco onde será denunciado ao paxá turco que a governava por um grupo de judeus de Aleppo ali residentes. Manrique, como tantos outros portugueses que por essa altura regressavam da Índia ao Reino pela via terrestre, era suspeito de transportar pedras preciosas não declaradas. Valeu-lhe um maronita caridoso que o escondeu da polícia otomana. Depois, em Beirute, ajudou-o o cônsul francês a embarcar para o Chipre, e daí para Malta, onde permaneceu algum tempo. Segue-se a Sicília e, a 1 de Julho de 1643, ei-lo finalmente às portas da Cidade Eterna, onde tem alojamento no convento da sua Ordem. Nos 26 anos seguintes desempenhará aí a função de “agente em Roma para a Província de Portugal”, tendo aproveitado para redigir, em língua castelhana, durante o ano de 1649, o relato das suas viagens e experiências no Oriente.
Em 1669, Manrique parte para Inglaterra, teria na altura mais de 75 anos de idade, sem que se saiba o motivo para tal viagem. A Igreja Católica passava um mau momento na Inglaterra de Carlos II. Esperava possivelmente a Ordem dos Agostinhos que Manrique fosse recebido nos círculos reais pela rainha Catarina de Bragança, portuguesa como o frade. Mas Manrique não teve tempo de exercer a sua influência pois seria assassinado por um seu criado, seduzido pela grande soma de dinheiro que continha o baú que o português transportava; depois de consumido o acto, o serviçal atirou com o corpo de Manrique ao Tamisa. E dessa forma inglória desapareceu esse nosso intrépido aventureiro, cuja obra e façanhas permanecem praticamente desconhecidas.
Joaquim Magalhães de Castro