O Tradicionalismo Católico – II
Como na semana passada dissemos, o objectivo do Tradicionalismo Católico é tão somente o intento de restaurar a liturgia romana no seu modo clássico ou anterior ao Concílio Vaticano II, as devoções públicas e privadas e a preservação da Tradição como fonte inalterável da fé e a doutrina católica. O movimento tradicionalista teve vários surgimentos em outras épocas que não a segunda metade do século XX, mas na sua forma actual radica nas transformações realizadas na Igreja pelo Papa Paulo VI, que teve a incumbência de prosseguir com o Concílio Vaticano II e legislar em conformidade com o que este produziu em termos de reforma eclesial. Mas que, como vemos, nem todos aceitaram.
Mas que alterações significativas se produziram que causaram recusa por parte dos tradicionalistas? Vejamos então. A alteração de uma oração como o “Pai Nosso”, é uma das questões mais evidentes. A tradução para “perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”, em vez da literal (a partir de “et dimitte nobis debita nostra, / sicut et nos dimittimus debitoribus nostris”): “perdoa-nos as nossas dívidas como também nós perdoamos aos nossos devedores”. Palavras diferentes, sentidos diferentes, respeito à letra original, eis o motivo de crítica à mudança.
Como sucede também com as alterações na missa, as quais são mais visíveis e logo suscitando mais atenção por parte dos fiéis. Para os tradicionalistas, na consagração, por exemplo, a missa passou de uma forma “secreta” – só o sacerdote a dizia de costas para os fiéis e em voz baixa –, para uma forma mais aberta e pública – o celebrante voltado para todos e em voz alta. Acrescido do problema do “pro multis”. Ou seja, enquanto o texto tradicional na versão latina original diz: “Hic est enim calix sanguinis mei […] qui pro vobis et pro multis effundetur”, a nova fórmula pós-conciliar transformou o “pro multis” em “pro omnibus”. E, ao invés de “por muitos”, traduziu-se para “por todos”. Estas subtilezas e muitas outras aludem para a (re)organização de todo o “Novus Ordo Misae”, a Nova Missa pós-conciliar, no seu todo, o que gerou polémicas entre os fiéis, muitos dos quais foram engrossando o lado tradicionalista.
CONTRA AS REFORMAS
A Liturgia é, como temos dito, a face mais visível de toda esta contenda. “Que os ritos se simplifiquem, mas bem respeitados na sua estrutura essencial; que sejam omitidos todos os que, com o andar dos tempos, se duplicaram ou menos utilmente se acrescentaram; que se restaurem, porém, se parecer oportuno ou necessário e segundo a antiga tradição dos Santos Padres, alguns que desapareceram com o tempo”, conforme à Constituição Conciliar “Sacrosanctum Concilium” (nº 50), a qual assim determinou, à luz do Concílio Vaticano II, num esforço de reforma ritual, de forma a “permitir ao povo cristão um acesso mais seguro à abundância de graça que a Liturgia contém”. O Concílio recomendou ainda que “devem os pastores de almas vigiar por que não só se observem, na acção litúrgica, as leis que regulam a celebração válida e lícita, mas também que os fiéis participem nela consciente, activa e frutuosamente” (“Sacrosanctum Concilium”, 11). Aqui surge discórdia, pois os católicos tradicionais interpretam a “participação activa” como “manifestação gestual e verbalizante”. Em relação a esta questão, o Papa João Paulo II (9 de Outubro de 1998) recordou com veemência que a “participação activa certamente significa que nos gestos, palavras, cânticos e serviços, todos os membros da comunidade tomam parte num único acto de culto, que não é absolutamente inerte nem passivo. Contudo, a participação activa não impede a passividade dinâmica do silêncio, da calma e da escuta: pelo contrário, exige-a. Por exemplo, os fiéis não são passivos quando escutam as leituras ou a homilia, ou quando acompanham as orações do celebrante, os cânticos e a música da Liturgia. A seu modo, estas experiências de silêncio e de calma são profundamente activas”. A celeuma não se resolveu com este esforço de esclarecimento papal, que é em si pleno de fundamentação e rigor católico, mas que mesmo assim não agradou aos sectores tradicionalistas, que basicamente pretendem regressar ao ordo antigo.
Os católicos tradicionais, com efeito, criticam o Missal Romano de Paulo VI (promulgado em 1969), o qual vigora em toda a Igreja Católica que usa o Rito Romano, mas que não exclui, recorde-se, a possibilidade de celebração da Missa Tridentina, que nunca foi proibida. Os opositores do novo missal consideram que o Papa Paulo VI enunciou que o novo Ordinário da Missa foi promulgado em aplicação das normas do Concílio Vaticano II, para substituir o antigo, ao mesmo tempo que recordou que o Papa Pio V ordenara que fosse usado o missal revisto sob a sua autoridade depois do Concílio de Trento. Tentando clarificar esta questão litúrgica, o Papa Bento XVI, pela Carta Apostólica em forma de “Motu Proprio, Summorum Pontificum”, em 2007, autorizou o uso mais amplo do missal de 1962 de João XXIII e explica que o missal actual (o de Paulo VI) permanece como forma ordinária da Liturgia e que o missal publicado por João XXIII poderá ser usado como forma “extraordinária” de celebração litúrgica. Recorda ainda que o uso do anterior missal nunca fora expressamente revogado. Não há dois ritos, por existirem duas versões do Missal Romano, em contextos diferentes e devidamente aprovados canónica e conciliarmente. Trata-se, antes, de um duplo uso do único e mesmo rito, remata Bento XVI.
No mesmo “Motu Proprio”, Bento XVI declara que a celebração da missa e dos sacramentos pode ser feita na forma “extraordinária”, sem a necessidade de autorização do ordinário do lugar (bispo), por qualquer presbítero apto para tal função, mas considerando válida e lícita a celebração da Missa Nova.
A principal resistência ao Concílio por parte dos tradicionalistas tem sido litúrgica, principalmente por causa da referida Missa Nova (ou Nova Missa), acusada por aqueles de ter um espírito revolucionário e de tentar tornar a missa “menos católica”, já que introduziu a recitação do Cânone em voz alta (que implica uma dessacralização do mesmo), modificando-se a fórmula consecratória. Os tradicionalistas consideram, por isso, que há uma aproximação ao rito luterano. Esta é visível, dizem, na remoção dos (antes numerosos) sinais-da-cruz e de várias orações milenares, como o salmo “Judica me” (desde o século XII), além de alterações em outras orações como o “Confiteor”. Antigamente, o celebrante, no “Confiteor” (Confissão), dizia que se confessa não somente a Deus, mas também à Virgem Maria, ao arcanjo São Miguel, a São João Baptista e aos apóstolos (actualmente: “Eu, pecador, me confesso a Deus todo-poderoso e a vós, irmãos, que pequei…”). E são muitas mais as dissidências, ou “diferenças”, acusações e pontos de ruptura.
Como veremos, a ferida está aberta, mas há “cura”…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa