As terras abandonadas do Mashonaland.
«Está a ver todo esse abandono, baldios sem rei nem roque?». A pergunta, com cheiro a desabafo, desperta-me daquela espécie de letargia prazenteira própria das horas mortas de trajectos de longo curso, e afasta-me o olhar dos fusiformes fiapos negros das queimadas anunciadas ao longe, quais sinais de fumo, com um primeiro plano de gado vacum avulso em franco pasto evocativo do que outrora foram as férteis terras do Mashonaland rodesiano. «Tudo isso eram plantações de trigo, e de outros cereais», prossegue Colin, meu colega de “cozinha”, que, apesar do nome, é negro, ou melhor dizendo, mulato. E é zambiano, embora resida em Harare, o que talvez explique o à vontade do seu discurso. «Tudo isso eram úberes plantações de brancos, mas Mugabe correu com eles e distribuiu as terras pelos familiares e amigos. Agora isto está assim: improdutivo e, de novo, selvagem».
«Mas, onde vivia essa gente?», pergunto, com a curiosidade acicatada ao não vislumbrar quaisquer sinais de povoações, se bem que as cercas ferrugentas, ou parte delas, e os postes eléctricos, pendentes, insistam em continuar a acompanhar-nos na nossa vertiginosa corrida de ver passar quilómetro atrás de quilómetro. «Repare ali!». Colin aponta umas quatro paredes onde se adivinha uma porta oculta numa fileira de árvores mais altas e de uniforme espécie (ao contrário da variedade que cunha esta savana de terras altas e onde entram muitos embondeiros), que traduziam na perfeição esse distanciamento voluntário dos colonos brancos em relação aos autóctones, que agora protagonizam, mal ou bem, o devir das terras dos seus ancestrais do Grande Zimbabué, Monomotapa e Manika.
A verdade é que o meu interesse é outro. Mas ainda não, ainda não posso ir direito ao assunto, até porque, segundo as minhas contas – e não é preciso consular os A4 que guardo religiosamente – ainda não estamos à quota do rio Angwe, e à nossa esquerda surgem uns silos (desses que se vêem com abundância na África do Sul). «Não se iluda, estão vazios», alerta Colin, como que a adivinhar-me o pensamento. «O Zimbabué, à falta de produção, vê-se agora obrigado a importar do país vizinho. A maioria mudou-se para a Zâmbia, onde lhe foram postas à disposição terras. Agora é a Zâmbia que exporta leite e trigo para o Zimbabué, quando outrora acontecia precisamente o contrário».
Também a estrada que percorremos é de um desnível e uma estreiteza pegadas, o que confere à Yutong da Lion King, com 79 assentos legalmente registados e corredor minúsculo, um balançar mais próprio de barcaça do que autocarro. O facto suscita, a tempos irregulares, gritinhos, misto de susto e gozo, numa bela negrinha sentado ao nosso lado.
Mas falava eu de letargia prazenteira. Sim, o prazer de me sentir em viagem mesmo que o panorama exterior não se tenha alterado muito desde a travessia do Zambeze, em Chirundu, fronteira comum destes países que foram um só e depois dois, embora com o mesmo nome, a separá-los uma mera designação geográfica. A Rodésia do Norte, hoje Zâmbia; e a Rodésia do Sul, hoje Zimbabué.
O Zimbabué retratado no episódio atrás descrito era ainda o Zimbabué de Robert Mugabe, o filho de um fazendeiro local, educado num colégio de jesuítas e ex-professor primário que há dias foi destituído do cargo de Presidente da República. Durante os 38 anos em que se manteve no poder, com absoluto controlo sobre a área judicial e a Imprensa, conduziu o Zimbabué, de líder africano na exportação de produtos agrícolas a mero importador e assíduo cliente do socorro alheio. Entretanto, setenta por cento da população activa ficou no desemprego e a taxa de inflação registou uns astronómicos dez mil por cento. A saída de cena do autoritário shoana, além de previsível, pecava pela demora.
Joaquim Magalhães de Castro