Os ombros de um homem frágil

VATICANO E O MUNDO

Os ombros de um homem frágil

De repente, navegando pela Internet, à procura das notícias mais importantes do dia, os meus olhos deparam-se, surpreendidos, com a fotografia insólita: um velhinho de ar emaciado, com um aspecto extremamente frágil, numa cadeira de rodas.

Vestida de branco, a insignificância daquela figura, por entre a multidão, mais me chocou, ao ver quem era. Nem mais nem menos do que Bento XVI, o nosso Papa Emérito, ou mais simplesmente, Joseph Ratzinger, ex-chefe da Igreja Católica.

Li que ia a caminho da Alemanha, seu país natal, visitar o seu irmão Georg, muito doente. E não pude resistir. Fixei a imagem. E detive-me, por longos momentos, a ver passar, diante dos meus olhos, a vida daquele homem erudito, sábio que, já quase no fim de uma existência humana plena, assumiria as rédeas da Igreja, nos tempos perturbados que foram os seus e continuam a ser os nossos.

E de repente, fascinado como sempre pela aventura humana e pelos seus principais protagonistas, dou comigo a rebuscar nas gavetas da memória tudo o que sabia sobre o homem, os seus desafios, o tempo que lhe tem sido dado viver, e a sua postura muito particular para ver e interpretar este preciso tempo histórico.

E a pergunta subjacente foi e é sempre a mesma: como se lê o mundo, a partir daquele seu ângulo especialíssimo de observação? Como se interpreta a História, quando se viveu dela os piores momentos, ainda por cima na sua própria pátria – o nazismo. O que lhe disse esta experiência das profundezas do mal e de como também isso o robusteceu na fidelidade ao Bem?

UM INSÓLITO “TRONO PAPAL”

No seu calvário de dor e de degradação física, devido à doença, João Paulo II, o grande pedagogo do sofrimento na sua própria pessoa fazia-se transportar – estamos todos recordados – numa cadeira rolante que aliava a dignidade do seu estatuto às exigências práticas da doença que o consumia e o vitimou.

Lembrei-me do querido e saudoso Papa Wojtyla, na sua fase final e mais dolorosa. Perdoe-se-me pois a imagem que não é de desrespeito, mas de indisfarçado afecto e de interrogação quase dolorosa: cadeira de rodas comum, a do Papa Emérito, qual insólito trono papal, no meio de uma multidão de aeroporto… Talvez!

E o percurso todo do Papa Ratzinger passou-me pelos olhos como um filme acelerado. Do intelectual seguro dos seus caminhos do espírito, perante os alunos em várias universidades, do bispo e do cardeal entre sínodos e conclaves, àquela figura de cera, de olhar interrogativo, da fotografia à minha frente!

Do Vigário de Cristo na terra, presidindo a cerimónias litúrgicas as mais faustosas, do Pontífice dirigindo-se a milhões de adolescentes e jovens adultos nas Jornadas da Juventude, do chefe de Estado lidando com reis e presidentes, àquele ser humilde, quase invisível na sua pequenez, quase inexistente na sua transparência!

E para reviver o Bento XVI de que me lembro bem, da minha vida de diplomata, atento à diplomacia da Santa Sé, revejo o Papa com Obama, com Putin, com o Rei saudita, com Isabel II, e um seu discurso perante a Assembleia Geral das Nações Unidas.

O OUTRO LADO DA VIDA

É bem verdade que a idade nos dá uma especial sensibilidade para interpretar, cada vez melhor, os contornos outrora difusos desse “outro lado da vida”, com que a velhice nos presenteia. Mas há intérpretes da aventura humana tão especiais, pelo papel que desempenharam e pela reflexão que fizeram sobre os acontecimentos do seu e do nosso tempo, que vê-los de repente desprovidos das suas insígnias de poder – temporal ou mesmo espiritual – é como que receber deles uma última lição de sabedoria e de vida.

O que se é depois de se “ser grande”? Cada homem gosta de ser agente da História e não apenas seu intérprete. Com os Papas passa-se o mesmo, certamente, com a razão acrescida de, no íntimo do seu ministério, estar inscrita a palavra “transformação”. Das pessoas, da sociedade, do mundo.

O QUE SE É DEPOIS DE SE “SER GRANDE”?

Muita curiosidade jornalística foi gradualmente dissipada, logo após a resignação de Bento XVI, quando ao sensacionalismo dos “dois Papas” se sobrepôs a profunda humildade de Ratzinger e a fraterna, solícita hospitalidade de Bergoglio.

E primeiro em Castel Gandolfo e depois nos jardins do Vaticano, remetido à vida monacal que se prometera, Bento XVI tem levado uma vida de meditação e de oração que considero uma força moral num tempo tão carente dessa força.

Primeiro, o garoto Joseph, filho de família de um polícia, na sua Bavária, anterior à loucura hitleriana. Depois o adolescente Joseph Ratzinger, confrontado com a vocação sacerdotal, na Alemanha nazi, como Karol Wojtyla, o seu antecessor, na Polónia comunista. Depois ainda, o percurso académico, os caminhos da Teologia, o doutoramento, a docência universitária, os escritos, os livros enfim.

E a progressão na hierarquia da Igreja leva-o ao chapéu cardinalício, à Congregação para a Doutrina da Fé, e ao conclave que lhe transformaria a vida e de que não sairia ileso, como nunca se sai. Que o diga o seu surpreendido sucessor.

E finalmente o princípio de uma agonia que nem sequer terá terminado com a sua resignação. A Igreja atacada de dentro e de fora, por forças que a querem destruir.

E o teólogo foi sentindo na carne que esse outro interlocutor do diálogo das tentações de Jesus, na eloquente descrição bíblica, continua à solta para oferecer todos os reinos deste mundo a quem o queira adorar. Pela sua formação e pelo caminho percorrido como Pontífice, Bento XVI sentiu o quanto frágeis eram os seus ombros.

UM OLHAR, UMA PRECE E O SILÊNCIO

Vivi em Coimbra, durante dois anos, muito perto do Convento das Carmelitas, onde vivia a Irmã Lúcia, a sobrevivente dos três videntes de Fátima. E não foram raras as vezes em que parei uns segundos para saborear o meu encontro com esse outro encontro, como se a corrente passasse segundo leis de uma Física que nem sequer eu compreendia. Mas a “impressão” lá estava. “Qualquer coisa me acompanhava”. Nem que fosse o reconhecimento intelectual do que acontecera cinco décadas antes, pois se celebravam na altura os cinquenta anos das Aparições.

Sem conotações equivalentes, no seu refúgio monacal dos jardins do Vaticano, o Papa Emérito é um testemunho especial, único mesmo, de pelo menos sete décadas da vida da Igreja e do Mundo. Não só da Igreja, mas do Mundo.

Arguto observador da cultura e da civilização cristã no Ocidente, seria muito interessante compreender a sua leitura das forças que hoje nos aprisionam numa espécie de cadeia asfixiante de contradições e que fazem do mundo contemporâneo mais perigoso, mais inseguro e mais vazio de certezas e de valores.

Bento XVI poderia por exemplo partilhar connosco as suas reflexões sobre por que abandonámos Deus (e não o contrário…), deixando-O sozinho na estrada do nosso triunfalismo tecnológico… e todos os outros.

Nas civilizações tradicionais africanas, o Velho era a tradição, quer dizer, a biblioteca, a memória, a sabedoria, a vida.

Poderia Bento XVI ser um dos nossos queridos Velhos da tradição africana? Quanto precisamos deles! De todos!

Boa estadia na terra natal!

Auf Wiedersehen, Papst Benedictus!

Carlos Frota

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