Sonho de uma noite de Verão
Ecos de um mundo diferente. De um mundo onde afinal a cooperação é ainda possível entre grandes nações; os líderes são sábios ou, no mínimo, só prudentes para a promover; a salvação da Humanidade e portanto do Planeta (a nossa casa comum, na conhecida imagem) não constituem um duplo sonho adiado, mas uma realidade alcançável.
E “vejo”, ou imagino, ou sonho, já nem sei, numa grande capital do mundo, ou na sede das Nações Unidas (assegurada a respectiva desinfestação pelo diligente “mayor”, Andrew Cuomo…) os principais líderes mundiais sentados ao redor da mesma mesa, com os seguintes pontos da agenda: 1) Cooperação global para a luta contra a pandemia, mormente nos países mais vulneráveis; 2) Vacina única gratuita, a disponibilizar a todos os países, logo que comprovada cientificamente a respectiva eficácia; 3) Insegurança alimentar mundial; 4) Desemprego; 5) Cooperação económica global.
Entretanto, soube-se (sonhei…) que Trump renunciou à linguagem ofensiva contra a China e dispõe-se a reencontrar o Presidente chinês para relançar o diálogo estratégico entre os dois países.
Acordo sobressaltado. Devo ter sonhado. Isto tudo é demasiado bom para ser verdade. E sonhei mesmo! O sonho de uma noite de Verão…
LIÇÕES DO MUNDO PASSADO
Levanto-me, em cada manhã, com uma antecipada sensação de “dejá vu”. Antes de me ligar ao mundo exterior, facilmente adivinho o que vou ouvir e ver. E sobretudo o que vou pensar sobre tudo isso.
Não, não me refiro apenas ao coronavírus e ao seu cortejo de consequências trágicas. Nem me refiro sequer, em segundo plano, à sua manipulação, para os fins próprios que cada actor político importante deste drama entende retirar, como vantagem pessoal, da desinformação, em torno da pandemia.
Refiro-me à descida diária aos infernos da cupidez humana, parente o espectáculo de tantos interesses cruzados, de tantas reservas mentais, de tantas cartas debaixo da mesa, ou sobre a cabeça de tanta gente que sofre – e da lembrança de muitos outros que já não sofrem porque são hoje só memória.
Nesse redemoinho de intenções obscuras, o discurso demagógico e populista todas as instituições manipula e de todos os palcos se serve. Incluindo igrejas chamadas cristãs, com quem previamente se negoceiam pactos de interesse “mútuo” (passe o pleonasmo) onde não é nada certo que os objectivos espirituais saiam vencedores.
COMO REFAZER A ESPERANÇA?
A resposta parece simples e imediata. Voltar a acreditar-se no Ser Humano, em causas que congregam em vez de dividir. Onde o estilo do discurso instile sentimentos de fraternidade e não suspeita e ódio. A praça pública mediática, à escala global, está saturada dessa espécie de mensagem desde há quase quatro anos e sabe-se donde ela vem.
Se o contexto internacional deletério que se vive desde o final de 2016 veio acentuar reais preocupações sobre o nosso futuro comum, a fatalidade da pandemia em meses mais recentes veio abrir ainda mais a caixa de Pandora do pior que a política tem, porque gerada no pior dos ventres, o da natureza humana. (Aliás, a História não se escreve se não com personagens reais. O embelezamento cosmético vem depois, para consumo das gerações futuras. Por isso o Senhor Trump terá sempre direito a um bonito quadro em qualquer museu…).
Mas tudo podia ser bem diferente! E porque não é diferente, mas é como é, é preciso reconstruir a esperança!
O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse há dias que a pandemia de coronavírus continua a provocar «um tsunami de ódio e xenofobia, como bode expiatório e é assustador». Apelou a «um esforço total para acabar com o discurso de ódio, globalmente».
O mundo está de facto sedento de mensagens e optimismo, de uma ética política baseada no serviço das comunidades, numa relação entre países, onde as marchas populares sejam treinadas com mais afinco do que as marchas militares. Não, não sou ingénuo. Os meus leitores compreenderam a imagem…
É preciso compreender que pôr o mundo “a ferro e fogo” só porque se quer ganhar a reeleição é jogo demasiado perigoso. E merece ser repudiado por aquela larga maioria de gente (ainda sã de espírito) que não aceita ficar prisioneira de tal loucura.
O QUE ACONTECEU, ACONTECEU
O que aconteceu, aconteceu. Não por incapacidade imaginativa, mas porque detesto confundir ficção com realidade, por mais plausível que pareça a ficção, sou muito pouco atreito a teorias da conspiração. A dos que procuram dominar o mundo, por exemplo. Esses, os dominadores dos impérios de mil anos ou seus próceres, tipo nazismo, ou ficam para sempre na sombra das bibliotecas, em tratados cheios de pó; ou nos conciliábulos, mais ou menos secretos, de hotéis na Suíça; ou tentam finalmente refazer o mundo à sua maneira.
A estes a História pune, de forma dramática, como os dois loucos de há 75 anos, o que se suicidou no seu “bunker” berlinense e o que foi fuzilado na pequena aldeia de Guilino di Mezzegra, no Norte de Itália, fez sete décadas e meia em 28 de Abril último. Por tudo isso, e porque recuso sequer a ideia de qualquer plano monstruoso por detrás do coronavírus, o que aconteceu, aconteceu.
E DEPOIS? AQUI COMEÇA A HISTÓRIA…
…e dá para o torto. Já noutro lado escrevi (e não vou por isso repetir aqui) que a China tem um pecado “imperdoável”. É grande. E quer ser mesmo grande, quer dizer, quer ser tratada como tal.
Ora acontece que, no lado imposto da equação dos poderes mundiais, há um outro país, uma grande potência, única até há pouco, e agora duplamente desestabilizada. Primeiro, porque quer prescindir das suas responsabilidades de líder mundial, demasiado onerosas segundo as suas contas, sem prescindir do seu “status” e dos seus tiques de polícia do mundo. A ideia não é nada original, mas continua a ser verdadeira. E depois, porque não quer (ou não pode ou não sabe) dialogar com quem é seu interlocutor inevitável, a grande potência emergente – a China.
EM GUERRA CONSIGO MESMO
Desde 2017 que os Estados Unidos, ou o líder eleito por uma minoria de americanos, estão/está em guerra consigo mesmo(s) e com o resto do mundo. Consigo mesmo(s), porque na tão propalada democracia “representativa” (bela ironia, no presente contexto) só tem verdadeiramente lugar de honra quem estiver alinhado com o poder errático do chefe. Com o mundo do chefe, que numa visão míope dos seus próprios interesses como país destrói pontes com os amigos, constrói muros contra os vizinhos, e “promove” à distinção de inimigo quem é só adversário, e se calhar, em muitos casos, só mesmo concorrente, no quadro aliás permanente da competição mundial.
COMPANHEIROS DE UM MESMO COMBATE
Há hoje duas visões diametralmente antagónicas do mundo: a do egoísmo nacional, erigido em dogma da conduta de certos países e líderes, e uma visão mais benigna, onde a cooperação internacional tem lugar na construção dos consensos mais amplos.
É fácil de concluir quem pertence a cada um dos clubes. E é por aí que as escolhas têm de ser feitas.
E volto ao meu sonho de uma noite de Verão. Onde nas muitas avenidas da vida não haja tantas barricadas mentais.
Sinceramente, meus leitores e amigos, isto é pedir muito? Ou é querer simplesmente viver?
Carlos Frota