Diário de um Correspondente de Guerra
Dou uma volta rápida pelos títulos dos jornais e pelos primeiros segundos dos jornais televisivos e “sites” das agências. E leio: O Exército Alemão pronto para ajudar na crise do coronavírus. E ainda: No Irão, em cada dez minutos morre uma pessoa infectada de coronavírus. A Hungria vai colocar unidades militares em 140 companhias estatais, durante a crise.
E poucas horas antes ouvia: «Portugueses, acabei de decretar o Estado de Emergência. Uma decisão excepcional num tempo excepcional». Era a voz do Presidente da República, confirmando o estado de guerra em que Portugal se encontra? Antes e depois dele, os seus homólogos dos mais diversos países fizeram e farão declarações semelhantes. E através delas, foram mudando tudo ou quase tudo no quotidiano de milhões de seres humanos, através do planeta.
Recolher voluntário. Depois, recolher obrigatório. E o conselho transformou-se em ordem, a mera recomendação em imperativo legal, e a consequência passou da simples censura à multa ou ao internamento forçado. O mundo de facto mudou.
FIQUEM EM CASA!
Não ousem sair! Por vós e pelos outros! Movidos pela necessidade e pelo bom senso, os políticos decidiram e os media fizeram-se eco. E, de um dia para o outro, o mundo mudou. As rotinas mudaram. Alteraram-se as expectativas de vida, pelo menos para o futuro próximo. E o nosso relacionamento com os vizinhos, os colegas de trabalho, os familiares mesmo os mais próximos, quer se queira, quer não, também se alterou.
Estamos em guerra. O inimigo, invisível que seja, está em toda a parte. Adeus ao mundo antigo.
Imagino-me na Europa, no nosso país, na nossa cidade, no nosso bairro, no café habitual, onde estão os nossos familiares, onde encontrávamos os nossos amigos de sempre. Mas num contexto agora inteiramente novo. E dali imagino-me jornalista em pleno teatro de combate, reportando para o exterior sobre um quotidiano estranhíssimo. Simulo pois uma nova profissão. Sou “correspondente de guerra”…
Mas custa a crer! Pois então a Europa está mesmo em guerra, o nosso país é beligerante de um conflito a sério? As nossas casas foram atacadas, a nossa rua bombardeada, os nossos vizinhos molestados? Não, é melhor e é pior que isso. O MUNDO ESTÁ EM GUERRA! Só que o inimigo realmente não se vê! Anda-se à procura dele de lupa, mas nem de lupa o “animal” se deixa ver!
E assim, desde há pouco mais de um mês que a História Contemporânea encerrou um capítulo e abriu outro. Uma nova era se iniciou. Antes, AV. Agora e daqui por diante, DV. Sim, Antes do Vírus e Depois do Vírus. Que os especialistas encontrem designação melhor para traduzir a transição de um mundo para outro, do antigo para o novo, mesmo que tal passagem tenha ocorrido sem foguetes, nem fogo de artifício, nem muito menos o tilintar de taças de champanhe, celebrando uma meia-noite qualquer na nossa imaginação.
MAS COMO ERA ESSE MUNDO ANTIGO?
– perguntarão os nossos bisnetos aos nossos netos, seus progenitores.
Olhem, era um mundo giríssimo! – dirão os pais deles. Os meus avós contavam que podiam ir trabalhar fora de casa, não ficando todo o tempo sentados em frente do computador. Nós íamos à escola, onde nos reuníamos com outras crianças. Chegámos portanto a conhecer muitos meninos e meninas e não a vê-los apenas pelos vídeos no telemóvel. Eram gente real, de carne e osso. Brincámos com eles, praticámos desporto juntos, passeámos – era muito giro!
Enfim, podia multiplicar as alusões a um “mundo antigo” que foi afinal o nosso mundo até há muito pouco tempo atrás…
Volto a passar os olhos pelos títulos da imprensa do dia. E leio de forma algo desordenada: Marrocos pede que as pessoas fiquem em casa por medo de coronavírus; Erdogan aconselha os turcos a ficar em casa, age para impulsionar a economia contra o coronavírus; Preparando-se para a guerra: africanos lutam por comida; Os Estados Unidos suspendem serviços de visto em todo o mundo devido ao coronavírus. Trump diz que invocará acto de guerra para combater o “inimigo” coronavírus; A Rússia lança campanha de desinformação por causa do coronavírus para semear o pânico no Ocidente, diz documento da UE; A Grã-Bretanha diz aos seus turistas para deixarem a Espanha. Escolas britânicas fecham e mortes de COVID-19 na Itália aumentam; África do Sul proíbe navios de cruzeiro de ancorarem em portos sul-africanos.
EXÍLIO INTERIOR
Neste novo e inesperado retiro interno, o apartamento transforma-se no nosso mundo todo. E os seus limites físicos passam a ser os nossos. Com várias janelas e portas para fora, todavia. Não vale a pena criar-se a ilusão doentia de se estar confinado a cela solitária, como se cumprindo pena de isolamento carcerário.
E as portas são as que dão para o supermercado da esquina, para a farmácia do bairro, para a paragem do autocarro que, no mundo antigo, nos levava livremente pelas ruas da cidade. E as janelas são as reais, as que dão para o jardim onde já não brincam crianças, ou as virtuais, as da rádio, da televisão, da Internet, que nos ligam ao mundo.
Afinal, neste universo de comunicações 24/7, como se diz agora, nunca estamos verdadeiramente sozinhos.
QUAL O INIMIGO MAIOR?
– pergunto-me, algo filosoficamente: o vírus ou o tempo?. E leio uma de entre milhares de histórias de gente comum como eu. O tempo passa tão devagar, diz Rosa Di Maggio, jovem esposa e mãe italiana de trinta anos. Ela é um dos sessenta milhões de compatriotas seus actualmente em reclusão domiciliária em todo o País, sob as rigorosas medidas da Itália para conter a propagação do COVID-19.
Enquanto confinada à sua casa em Conversano, uma pequena cidade na Apúlia, no Sul da Itália, Rosa fez um diário em vídeo, na segunda-feira passada, descrevendo um dia típico para ela, seu marido e muitos italianos, no que se tornou o novo normal.
“Passo todo o tempo a trabalhar no meu laptop”, refere. “Cozinhamos, limpamos a casa, vemos TV. Não podemos sair, excepto para a varanda. É muito difícil”.
A 9 de Março, o Primeiro-Ministro Giuseppe Conte anunciou que ampliava a todo o País o que já estava em vigor no Norte da Itália. As medidas incluem restrições de viagem, proibição de todos os eventos públicos, encerramento de escolas e espaços públicos, e suspensão de serviços religiosos, incluindo enterros e casamentos.
Já não há funerais! – era o título irónico de uma notícia que retive, como se o coronavírus fosse o salvo-conduto para alguma eternidade especial…
DIÁRIO DE UM CORRESPONDENTE DE GUERRA…
…intitulei eu, quase abusivamente, mas com algum intuito provocatório, este texto. Falei de guerra. Deveria talvez falar de trégua, de forma mais precisa?
Fora das suas nefastas consequências, o vírus força a uma suspensão da corrida do tempo… para reavaliar a vida? Ou isto é questão só para ociosos?
Um tempo de interioridade. Um tempo para finalmente agarrar o tempo, panaceia para os que, por exemplo por imperativos da carreira profissional, deixam tudo o resto para segundo plano.
Correspondente de guerra? Correspondente da vida, melhor, já que para milhões de pessoas a guerra está no quotidiano, provisoriamente adiado….
Carlos Frota