Vaticano e o Mundo

O Diálogo Necessário

1. Revi há dias, numa preguiçosa tarde de Domingo, um filme que deu brado quando foi exibido, pela primeira vez, há décadas, e que tem por título “As Sandálias do Pescador”.

É uma história de pura ficção, contando o percurso inverosímil de um bispo, detido durante muitos anos no interior da antiga União Soviética, e liberto pelo respectivo líder, com um único fim: mediar um conflito entre grandes potências, passível de conduzir a uma catástrofe nuclear, no contexto da Guerra Fria.

Elevado entretanto a cardeal pelo Pontífice de então, naquele tempo imaginado, o seu conhecimento profundo da “outra realidade”, a da URSS (que mais ninguém conhecia no Ocidente), associado à sua Fé profunda de pastor e à sua reconhecida integridade pessoal, acabaram por o conduzir a destino nunca por si sonhado. Qual? À Cadeira de Pedro, por falta de candidato com percurso mais “ortodoxo”, num improvável conclave, reunido de forma inesperada pela morte súbita do Papa.

A temática mais geral em que esta obra de ficção se inscreve é, naturalmente, a da presença histórica da Igreja em cada época. Pela sua influência no mundo, o Vaticano (que é face jurídica e política da Igreja) é chamado frequentemente a intervir nos acontecimentos de cada época, pondo nomeadamente a sua experiência diplomática à disposição dos Estados – ou de grupos em conflito no interior dos Estados.

Recordo aqui a intervenção do Papa na aproximação entre Cuba e os Estados Unidos, no tempo do Presidente Barack Obama, depois de décadas de hostilidade recíproca sem disfarces, a que a miopia política da nova Administração americana e do seu recém-empossado Presidente veio pôr em causa.

2. Tudo isto me veio à mente quando revi há dias a cronologia do conflito no interior da Venezuela, que entretanto se agudizou.

Recordo a visita discreta de Nicolás Maduro ao Papa Francisco, para pedir a mediação pessoal do Pontífice na superação do impasse em que se encontrava o seu relacionamento com as forças da oposição.

Senti, na altura, que a iniciativa do Presidente abria portas para uma solução, a médio prazo, da crise profunda em que o País mergulhara. Mas enganei-me.

Três milhões de refugiados depois, e com uma economia em ruínas, a Venezuela “tem dois Presidentes”, duas legitimidades políticas que competem, duas facções do mesmo povo que se opõem e, no horizonte próximo, a possibilidade de uma guerra civil e de uma eventual intervenção militar estrangeira. Deus proteja aquele pobre povo, nossos irmãos!

Não conheço os detalhes dos obstáculos que fizeram desistir Maduro da intervenção reconciliadora da Santa Sé, que ele mesmo fora pedir ao Papa. Mas algo me parece óbvio: prevaleceu a lógica clássica do poder sem partilha.

De facto, o diálogo implica que se tem de ceder parcialmente, para fazer o meio caminho que é preciso trilhar, a fim de chegar ao adversário. O compromisso assim o obriga, como condição “sine qua non” de uma solução.

Por decisão própria ou aconselhado pelos seus próximos, Nicolás Maduro optou por, à revelia da Constituição vigente na altura, reinventar à sua medida a estrutura institucional do País, à imagem de uma revolução fora de tempo. Com “slogans” fora de tempo. Abandonando o pragmatismo da reconciliação que os interesses do seu povo exigiam.

E a oposição não está isenta de culpas nisto tudo, porque não soube superar rivalidades internas, muitas fundadas na competição entre personalidades, para apresentar ao poder uma frente comum que o pressionasse a negociar.

3. A agitação nas ruas, a falta de bens de primeira necessidade nas lojas dos bairros mais pobres, a infracção vertiginosa que deixou papel inútil em vez de dinheiro válido no bolso das pessoas – tudo isto conduziu à fuga maciça de gente para os países vizinhos, debilitando ainda mais zonas já pobres do Brasil e da Colômbia, nomeadamente.

Muita gente válida, com ligações familiares mais próximas da Europa, começou a chegar entretanto a Espanha e a Portugal, procurando reiniciar vidas destroçadas. Gente que faz falta ao esforço inevitável de uma economia em… frangalhos.

Não é preciso abraçar nenhuma ideologia em particular para se concluir que, quando o poder cega, quem perde é o povo, mesmo que se invoque esse mesmo povo para justificar a manutenção no poder.

Só podemos desejar que o diálogo e a reconciliação prevaleçam, num país a esvair-se do mais precioso dos seus recursos, que não é o petróleo, mas as pessoas.

Mas que a inviabilização da mediação da Igreja constitui uma oportunidade perdida – que a História julgará – não tenho nenhuma dúvida sobre isso.

Uma das muitas afirmações proferidas pelo Papa Francisco, em tempos mais recentes, sobre o clima no interior das sociedades e sobre o modo como decorre a vida internacional, tem a ver com o imperativo do diálogo: o cristão constrói pontes e não muros.

4. Parece lógico concluir esta crónica com uma referência, ainda que muito breve, para já, à recente visita do Papa ao Panamá, não distante da Venezuela. Onde Nicolás Maduro, Juan Guaido e todos os actores importantes do drama venezuelano, de todas as sensibilidades políticas, no meio das peripécias da crise, terão ouvido, mesmo que ao longe, a mensagem de Francisco.

Porque, tratando-se de mensagem, dirigida a milhões de jovens de todo o mundo e particularmente, este ano, aos latino-americanos, também teve como destinatários os jovens venezuelanos.

As Jornadas Mundiais da Juventude são, com efeito, oportunidades, como quaisquer outras (mas com a vantagem óbvia de uma mobilização de jovens impressionante), de lançar as bases de uma nova ordem mundial da felicidade, baseada em valores e não nos jogos de poder.

A Venezuela tem problemas internos muito graves e não pode escapar ao contexto internacional, hoje prevalecente, de competição estratégica entre potências.

Ora, nem americanos nem russos vão substituir-se aos venezuelanos, e principalmente aos jovens, na reconstrução do seu país – e na construção do seu futuro.

Aqui é que (ousaria eu dizer) um nacionalismo moderado e saudável, não xenófobo, mas como pura expressão do amor dos jovens venezuelanos pela sua pátria, deveria reuni-los num mesmo grito mobilizador: “Venezuela first!”.

Carlos Frota

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