Quando o espírito sopra…
Quando o espírito sopra… quando é a brisa que suavemente altera as páginas do livro da vida e nos mostra o capítulo certo onde devemos recomeçar a ler. Pois é do livro da vida que venho falar.
Tenho-me dedicado ultimamente a prosseguir a narrativa das minhas memórias, para além das já publicadas sobre o meu tempo na carreira diplomática.
Qual o objectivo? Pois não é o de contar uma aventura de que eu seja o herói singular mas, antes, o de reconstituir o contexto que me moldou e me fez quem sou. E porque esse exercício se reporta a uma época, isto é, a um tempo colectivo – ou a vários… de tal modo o mundo, tantas vezes, mudou! – poderia perfeitamente ser contado por qualquer pessoa aproximadamente da minha idade (salvo as vivências estritamente pessoais, claro) que tivesse vivido o que a minha geração viveu.
E o que viveu a minha geração?
É fácil resumir: um pouco mais de um quarto de século sob o antigo regime de Salazar-Caetano; o trauma de África para aqueles que sofreram com o modo como a descolonização teve lugar; as vicissitudes da instauração da democracia em Portugal; o ingresso do nosso país na CEE, dez anos depois; cinco anos mais tarde, a dissolução da URSS; enfim, as falsas promessas de estabilidade mundial com o novo século…
…tudo para desaguar no novo protagonismo da Rússia, na ascensão da China ao estatuto de potência económica mundial e à reacção agressiva (porque temerosa) dos Estados Unidos, na tentativa de manter indefinidamente a hegemonia sem partilha de superpotência única.
Quase três quartos de século pois de aventura humana, em que o troar dos canhões deu lugar ao ruído das escavadoras da reconstrução; novos países surgiram; impérios prometidos para um milénio ou para sempre soçobraram; e grandes nações, votadas à miséria extrema, se ergueram contra o destino, provaram o contrário – e provocam hoje receios à maior potência mundial.
E onde esteve Deus?
E nesse tempo todo, onde esteve e onde está Deus? Onde habitou Ele na minha aventura individual e na aventura colectiva do século?
Sim, Deus é uma aventura individual e uma aventura colectiva. Assim, a dupla questão surge, inevitavelmente e repito-a para mim mesmo: em todo este tempo, onde esteve Deus para mim? Como surgiu na minha vida e como se tem mantido nela… se se tem mantido? E no século, no mundo lá fora – que O dispensa, que O escorraça, que O insulta, que foge d’Ele?
O caminho de cada um
No plano individual, o primeiro encontro com Deus é algo sempre misterioso. De facto, quando cada um de nós tenta recordar como é que Deus surgiu na sua vida, as respostas variam da própria estranheza da pergunta (mas Deus esteve sempre presente em mim!), passando pela Sua emergência lenta no nosso caminho, até finalmente, quiçá, à Sua revelação súbita e indelével, num acontecimento particular, datado, da nossa existência.
Aqui não menciono, porque para além do âmbito desta crónica (e não por desrespeito), os que nunca tiveram tal experiência.
Cada um de nós, percorrendo o seu caminho interior, sabe responder a esse questão fundamental: como surgiu Deus na nossa vida?
Uma mão firme a afastar-nos do pior?
E como responder à outra pergunta, a da presença de Deus no século, no mundo? Onde tem estado Ele nos acontecimentos que vão moldando cada época? O axioma de que parto é simples, tão simples que pode parecer pueril – mas não me importo nada com tal caracterização!
Deus está connosco em tudo o que fazemos de bom, de bem. Simples, não é?
Mas vejamos as consequências, quer na política internacional, quer na política interna:
– na preferência pelo diálogo em vez da ameaça ou do conflito;
– na ajuda ao desenvolvimento pela cooperação internacional, em vez da indiferença perante a pobreza extrema, a doença, o analfabetismo;
– na protecção das minorias vulneráveis contra a brutalidade dos senhores da guerra;
– pela preservação de recursos como bem comum nacional, em vez da sua captura por poucos, para enriquecimento criminoso de alguns;
– pelo acolhimento dos refugiados e imigrantes, em vez de (diabolizando-os) os converter em trunfo político, para ganhar o poder.
E Deus abandona-nos quando a nossa opção LIVRE nos conduz ao fim oposto.
Percebe-se agora as opções do Papa Francisco? Percebe-se onde vai ele inspirar-se?
A esta luz…
A esta luz, como seria resolvida a questão da Venezuela? Por que militares e civis não se sentam e conversam? Quem tem medo do diálogo, aqui?
E do Sudão? Mais uma vez, o que temem os militares ao cederem o poder aos civis?
E dos Rohingya? Assusta tanto à maioria budista integrar os seus irmãos muçulmanos na comunidade nacional? Quem acicata o ódio e com que fim?
E dos emigrantes em risco de perecerem no Mediterrâneo, enquanto os Governos discutem quem tem afinal a obrigação de os acolher? Como é possível tal crueldade, perante a imensidão da tragédia?
A esta luz… mas é preciso que os líderes prefiram “essa luz”, às regras obscuras da luta pelo poder. A claridade demasiada faz mal a muitos!
Uma resposta diferente
Imaginem, no melhor dos mundos, os líderes europeus, reunidos em Bruxelas e discutindo pacifica e construtivamente várias questões relativas ao fluxo migratório vindo das zonas de conflito no Médio Oriente e de África. E tentando resolver os seguintes pontos de uma agenda comum:
Como organizar um centro de recenseamento de competências, no seio dos refugiados, examinando a veracidade de diplomas universitários e outros, e orientando-os para centros de validação dos seus graus académicos;
Num segundo momento, identificação de país de possível acolhimento, em função das necessidades específicas no mercado de trabalho de técnicos com o perfil do candidato.
Coordenação a nível europeu de programas de inserção social dos refugiados, passando pela prioridade da aprendizagem da língua do país de acolhimento. Etc., etc.
Quer dizer: decorridos estes três ou quatro anos caóticos no que toca à (não) política europeia de imigração, um esforço de sistematização e coordenação de medidas concretas.
Alguns mais informados poderão ficar surpreendidos com este meu texto e dizer com ar comiserado: mas tudo isso já existe e está a ser implementado! Você está é mal informado!
A esses eu responderei: então por que tudo isso não é objecto de maior e melhor informação para o grande público? Por que continua a ser tão fácil confundir os espíritos, jogar com receios enraizados no mais fundo da psique humana, tornando largos sectores de certas comunidades nacionais cativas do jogo perigoso da xenofobia e da discriminação dos estrangeiros?
Onde habita Deus em tudo isto?, reitero a pergunta essencial.
Carlos Frota