As aparições de Fátima têm várias particularidades especiais, quando comparadas com as outras grandes manifestações espirituais. Entre esses elementos, nenhum é tão inexplicável como a referência à Rússia. Como se entende que a Rainha do Céu venha à Terra falar de um país em particular? Porque o faz na outra ponta do continente, separada por um abismo geográfico, político e cultural?
Nossa Senhora faz essa referência apenas em dois momentos das aparições. Primeiro, na grande visão de Julho, na parte do segredo inicialmente revelada. Ao referir uma possível guerra “ainda pior”, afirma: “Para a impedir virei pedir a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas. Por fim, o meu Imaculado Coração triunfara. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz”. A segunda referência acontece doze anos depois, na aparição a Lúcia em Tuy, onde a Senhora solicita: “É chegado o momento em que Deus pede para o Santo Padre fazer, em união com todos os bispos do mundo, a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração, prometendo salvá-la por este meio”. Sabemos como essa consagração tardará 55 anos, só sendo realizada, segundo a forma pedida, em 1984, por São João Paulo II.
Lúcia declarou mais tarde que os pastorinhos não sabiam quem era a tal Rússia, pensando ser uma senhora muito má. Limitaram-se a relatar o que tinham ouvido, deixando a interpretação à Igreja. O pedido era claro, mas não o significado. Quando eles o ouviram, meses antes da Revolução de Outubro, a Rússia estava em turbulência, mas sem nada de especial. Mesmo se, na altura, a mensagem tivesse sido apresentada a um especialista em geo-estratégia, não se compreenderia como a Rússia menchevique poderia estar ligada a guerras, perseguições, martírios e aniquilamento de nações. Tudo isso sucedeu depois, precisamente porque a consagração foi tardando.
Hoje, com distanciamento histórico, já não se estranha que a Rainha do Céu e da Terra se tenha referido à Rússia. De facto, nas décadas seguintes às aparições, a URSS estaria envolvida em calamidades nunca igualadas na sangrenta história da humanidade. Mais, se a violência, opressão, demagogia e miséria soviéticas atingiram níveis inauditos, essa catástrofe manteve sempre um tom anti-religioso, não só extremo, mas gratuito e inexplicável. Na epopeia do comunismo, quase parece que a destruição do Cristianismo fosse missão primordial. Assim, os acontecimentos a Leste, hoje incompreensíveis, manifestam um verdadeiro mistério do mal, num nível só igualado pelas revelações maravilhosas de Fátima.
Assim, através das singelas palavras que ecoaram num ermo da Serra d’Aire, Portugal e a Rússia, dois extremos do continente estiveram unidos num momento decisivo do século mais feroz de sempre. Os acontecimentos foram horríveis, mas a promessa cumpriu-se: no confronto, a oração, penitência e consagração foram mais fortes. Hoje, de novo unidos em Fátima, Portugal e Rússia agradecem à Rainha do Céu a sua solicitude maternal.
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Universidade Católica Portuguesa