As cores e o ensino de outrora
As ruínas da igreja de São Paulo são o epicentro de Macau, o seu ex-libris. A escadaria que dava acesso ao reputado templo dos jesuítas é hoje percorrida diariamente por dezenas de milhares de pessoas. Isso é ponto assente. Mas o que poucos sabem é que o incêndio de 1875, que destruiu a igreja e o colégio, e que apenas deixou de pé a fachada, alterou muito do que era o edifício histórico. Para começar, na sua versão original, todos os santos estavam pintados. Pintados de vermelho, a acreditar nos documentos coevos, embora muito provavelmente predominasse mais o cor-de-rosa, numa tentativa artística de melhor representar a cor da pele. E isso não será muito difícil de imaginar, se pensarmos que foram artistas chineses – muitos deles originários de Fujian – que trabalharam as pedras, que trabalharam as estátuas, e que “impuseram” a sua forma de pintar. Até porque o vermelho – como se sabe – é uma cor muito chinesa. O vestuário surgia a dourado, outra cor chinesa. Também a Virgem Maria era representada com vestes douradas, mãos e rosto a vermelho e a cor de rosa, e tinha dois anjos a coroá-la: com uma coroa dourada! Também a famosa representação do Menino Mundi, e até a própria pomba símbolo do Espírito Santo, estariam pintadas a dourado, pelo que o espectador tinha uma dimensão muito impressionante desta fachada.
A igreja de São Paulo terá sido acabada em 1644. Quanto ao colégio (bastante anterior a isso) com o mesmo nome, anexo à igreja e do qual ainda há restos da cela e do pátio, comunicava lateralmente com o templo. Não era apenas um colégio universitário, que ensinava e permitia aos mais letrados e estudiosos doutoramentos em Teologia. O colégio contava também com uma parte primária e secundária aberta à população masculina local, situada na parte térrea. E esse espaço era frequentado não só por filhos de portugueses, mas também pelos frutos das ligações amorosas entre portugueses e chineses, aqueles que mais tarde viriam a ser conhecidos como “macaenses”. O resultado dessa actividade educativa está patente nas muitas escolas cristãs existentes em Macau.
Lembre-se, no entanto, que quando se fala em portugueses em relação a Macau há que perceber que se trata de uma coisa plural. Pois por vezes esses “portugueses” são, afinal, espanhóis, italianos, descendentes de espanhóis e italianos, euro-asiáticos, mestiços de portugueses com birmanesas, portugueses com senhoras de Malaca, com senhoras do Japão. Enfim, eis-nos aqui perante uma variedade populacional muito grande e diversa que tem no Catolicismo o seu elo de ligação.
A Macau multiétnica com que nos deparamos na actualidade resulta de um processo de miscigenação que remonta à fundação da própria cidade. Uma cidade com características únicas. Assiste-se em Macau a um hibridismo cultural extraordinário: está-se simultaneamente numa cidade europeia na China com características únicas e numa cidade chinesa muito antiga. E um bom exemplo disso é o sermos surpreendidos pela grandiosidade de uma imponente fachada de construção europeia – um retábulo jesuíta, feito em pedra, que é isso que é – e, a cinquenta metros, depararmos com um templo chinês. E é isso que dá realmente a ideia do património.
A fundação do Colégio de São Paulo, em 1594, não foi só o resultado do desenvolvimento económico, mas também, e principalmente, o fruto das necessidades da Companhia de Jesus, cujo objectivo era a preparação dos jesuítas para as missões da China, Japão e outras partes do Oriente.
Com a jurisdição sobre a China, Japão, Coreia e ilhas adjacentes, Macau era o centro difusor da religião católica no Extremo Oriente. E a Companhia de Jesus desempenharia um papel preponderante na fundação, crescimento e conservação desta cidade.
Ao falar de jesuítas, falamos de uma classe muito especial de pessoas. Esta é gente culta, alguns são muito bons astrónomos, extraordinários matemáticos, alguns são óptimos cartógrafos que produziam mapas extraordinários, que circulam pelas salas e corredores do Colégio de São Paulo.
Conhecemos infelizmente mal a biblioteca deste colégio, só conhecemos fragmentos. Conhecemos mal os instrumentos científicos com que se estudava Matemática, Geometria, Geografia, Cartografia… E, portanto, este colégio foi a primeira Universidade da China.
Na actual cripta podemos apreciar as estruturas originais do edifício religioso, que servia também de cemitério. Alguns especialistas de arquitectura sugerem que este tipo de fundações, na pedra que aflora, ajuda a explicar que o incêndio de 1875 tenha destruído completamente a igreja, mas não as ossadas de alguns dos jesuítas que viveram em Macau. Ao lado da cripta, há um pequeno e interessante museu com peças de arte sacra de origem filipina, resultado de um permanente diálogo histórico-cultural entre Macau e Manila.
No pátio da actual residência da Companhia de Jesus estão algumas das lápides funerárias e alguns pilares do antigo Colégio de São Paulo.
Joaquim Magalhães de Castro