Rua da Senhora Dona Ilda – 1

Rua da Senhora Dona Ilda – 1

O CLARIM publica a primeira parte do conto “Rua da Senhora Dona Ilda”, da autoria de Jerónimo Santos, classificado em segundo lugar na edição de 2020 do concurso “O Outro Lado da Escrita”, organizado pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Os contos dos três primeiros classificados foram entretanto compilados no livro “Tribunal de Contos” (edição Almedina), cujo lançamento, a cargo de Francisco José Viegas, tem hoje lugar no Salão Nobre do Tribunal da Relação de Lisboa. Jerónimo Santos é juiz presidente do Tribunal Colectivo dos Tribunais de Primeira Instância de Macau.

N.d.R.:Segundo o Papa Francisco, ninguém está excluído do Reino de Deus. Na primeira exortação apostólica do seu Pontificado, Evangelii Gaudium, o Santo Padre ensina: “A Palavra de Deus convida-nos também a reconhecer que somos povo: ‘Vós que outrora não éreis um povo, agora sois povo de Deus’ (1 Pd., 2, 10). Para ser evangelizadores com espírito é preciso também desenvolver o prazer espiritual de estar próximo da vida das pessoas. […] A missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente uma paixão pelo seu povo. Quando paramos diante de Jesus crucificado, reconhecemos todo o seu amor que nos dignifica e sustenta, mas lá também, se não formos cegos, começamos a perceber que este olhar de Jesus se alonga e dirige, cheio de afecto e ardor, a todo o seu povo (n.º 268). O próprio Jesus é o modelo desta opção evangelizadora que nos introduz no coração do povo. […] Se falava com alguém, fitava os seus olhos com uma profunda solicitude cheia de amor: ‘Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele’ (Mc., 10, 21). Vemo-Lo disponível ao encontro, quando manda aproximar-se o cego do caminho (Mc., 10, 46-52) e quando come e bebe com os pecadores (Mc., 2, 16), sem Se importar que O chamem de glutão e beberrão (Mt., 11, 19). Vemo-Lo disponível, quando deixa uma prostituta ungir-Lhe os pés (Lc., 7, 36-50) ou quando recebe, de noite, Nicodemos (Jo., 3, 1-21). A entrega de Jesus na cruz é apenas o culminar deste estilo que marcou toda a sua vida (n.º 269)”.

Quando Ilda morreu ninguém chorou. Tinha acrescentado à humanidade apenas dois anónimos elementos e tirado da pobreza absoluta apenas outros dois. Até os dias que ultimamente vinham sendo construídos a vergastadas de chuva carregada misturada de vento silvante, como se da união de água e vento agrestes se pudesse fazer tempo para despender em vidas modestas, foram paulatinamente de cinzentos e caramunhados até consentirem que o sol tocasse a terra humedecida que fumegava aqui e ali em retribuição. No casebre estava Ilda, agora amortalhada, e tinha um prego espetado no céu-da-boca, disseram as crianças mais velhas da escola primária para assustar os mais timoratos, numa forma de imaginação pueril oriunda do sussurro apoquentado e misterioso que preenchia de silêncio e de oculto o povo da aldeia.

Mangelino era a alcunha do seu companheiro, um homem provido de um limite máximo da respectiva capacidade intelectual muito próximo do limite mínimo conhecido até então pela ciência. No entanto, Mangelino não era mau sujeito, contrariamente a muitos néscios que, por serem refinados matreiros, parecem dotados de intelecto vasto.

Ilda, desde que se iniciara como prostituta, pelos seus dezassete, gizara um plano arriscado e ambicioso, impossível talvez: deixar de o ser. Ah, se conhecesse um homem rico que a estimasse! Sonhava como sonha um inocente. Só por sorte não calhou assim. Mangelino tinha apenas onde cair morto. Um casebre de telhas que, de onde em onde, deixava ver as estrelas e entrar uns aborrecidos pingos de chuva aí por meados de Abril e não só. Pior era no Inverno: entrava a geada que se formava mesmo em cima do catre. Os corpos juntavam-se para vencer o frio que atacava por todos os lados como o inimigo que cativara para sempre o pai de Ilda em La Lys. Alguns diziam Flandres, mas nunca Ilda entendeu porquê. Nem entendia como o seu pai, tão valente, capaz de a levantar só com um braço até uma altura imensa, de fazer vertigens, se apartou do Corpo Expedicionário do soldado Milhões de Murça, fosse lá isso o que fosse, ouvira-o ao fala-barato Manel Zé, e se deixou ficar por vontade inextrincável desse tal inimigo no fundo lamacento das trincheiras. Mas, enfim, a gente tem de se conformar, dissera-lhe a mãe que a pneumónica levou para que deixasse à filha, em herança, quinze viçosos anos e um vazio infinito. Repetia sempre em resposta aos anseios e angústias da filha: «Ilda, quem se conforma com a sua sorte, é feliz até à morte. Digo-te eu!» Aquela frase da mãe, tantas vezes repetida desde idade tenra, ficara a fazer parte integrante de Ilda. Nunca se queixou. Nem mesmo quando foi viver para a aldeia de Mangelino onde não havia outra mulher que se lhe comparasse. Ilda era única: vivia com Mangelino e não era casada com ele; tinha sido uma mulher dessas do mundo e era de fora. Esta conjuntura dotava-a de um estatuto tal que a dispensava de ir à missa e a todos os funerais, baptizados e casamentos ou outras ocasiões em que o povo se ajuntava por razões supraindividuais, mesmo àquelas a que Mangelino ia. Especialmente se incluíssem o Senhor Padre Inácio.

A horta e o casebre eram as extremidades do caminho onde Ilda imprimia pegadas diárias e solitárias. Às vezes a feira da vila, onde conhecera Mangelino, contava com a presença de Ilda regateando com mestria os preços, quer do cebolinho vindo cedo do Vale da Vilariça para replantar na horta, quer de um vestido de chita.

– Falas mais na feira do que no resto do ano, mulher de Deus, dizia-lhe Mangelino que a seguia como se de um acrítico apêndice se tratasse depois de meio quartilho de vinho tinto aviado cedo na taberna do Racha-Diabos.

O Brasil que, mediante carta de chamada, lhe levou os dois filhos para longe da memória dos dias e de quem o povo dizia que eram a cara dos pais, oficialmente incógnitos, devia ser perto da Flandres que lhe levara o pai, dissera-lhe um dia o Mangelino que, só pelo facto de ser o seu homem, possuía insofismável, todo o saber do universo, quer este esteja, quer não esteja, em expansão.

Mangelino era um homem capaz de demonstrar, por A mais B, a tese do bom selvagem: chegava a casa moído da jeira e da enxada, comia sôfrego o caldo que Ilda preparara depois de vir da horta com o regaço cheio de vegetais vários; depois perguntava com voz de tonalidade mais apropriada para contar segredos: «Queres?» E, se Ilda respondia sim, ainda que a resposta fosse tácita, Mangelino arfava antes de dormir. Se Ilda dizia que lhe doía a cabeça, Mangelino dormia sem arfar primeiro. No entanto, fosse qual fosse a resposta de Ilda, ressonava como um comboio a carvão, enquanto Ilda acondicionava as louças da janta mal untadas com azeite que ambos ganhavam nas jeiras de Inverno lá para os lados de Mirandela – Vimieiro, Alvites e Avantos, mais propriamente, mas sempre nos vastos olivais do Senhor Doutor de Pinhovelo.

O burburinho começou a tomar conta da serrana aldeia a partir do adro da igreja. O Reverendo Padre Inácio dissera ao sacristão, não com cara de núncio nem de profeta, mas de familiar chegado do Divino e de convidado frequente dos feitores da sua vinha:

– A morta não pode ser enterrada no cemitério.

Dito isto e mal o sacristão lhe devolveu as rédeas do cavalo, o Prior seguiu determinado como compete a um anunciador da boa nova deixando o acólito não só sem palavras como arredio de ideias para levar a cabo a missão que lhe havia sido incumbida por curta sentença de fundamentação omissa, mas de eficácia pálida.

– O que se passa Sebastião? Não vais bom. Pareces amarelado. Foram as palavras da Dona Inocência, mestra exímia de uma arte ancestral que se denominava então por tirar nabos da púcara.

– Deixe-me lá, Dona Inocência, que a coisa não é para menos. Não sei onde vamos enterrar a mulher do Mangelino.

Estava prestes a chegar a hora de acomodar o animal, o que levou o sacristão a ir deixando a conversa na exacta medida em que se ia retirando a passo misturado de lento e titubeante. Já na casa paroquial, com falinhas-mansas e a medo, perguntou:

– Senhor Abade, então onde se há-de enterrar?

– Enterrem-na pra’í numa borda.

Deglutiu o sacristão o nó que já trazia suspenso na garganta e, mais ensimesmado na previsão que o acompanhava sobre o entesar do silêncio que ia naquele povo de homens de antes quebrar que torcer, seguiu a acomodar o cavalo que tinha andado todo o santo dia acompanhando o seu dono a espalhar a fé por ásperas terras transmontanas sem nunca contestar a pesada doutrina que lhe seguia ao lombo. Um sacristão e um cavalo, staffda fé ou sinédrio encimado pelo vigário intransigente.

Além do cavalo, calado também ante a autoridade do Senhor Prior que, pela certa, lhe vinha directamente do Altíssimo, andava o povo ao ver que se aproximava a hora do mortório.

– Mas o mortório é uma noite, o cemitério é para mais tempo, dizia um de entre os que compunham um pequeno grupo sem perturbar o silêncio geral.

– Quem devia mandar no cemitério devia ser o povo que deu a terra, dizia outro noutra instância identicamente silenciosa.

– O Padre merecia umas «tchapadas», disse o atoleimado Gabriel querendo intervir na conversa apesar de, como desde que atingira a idade da razão, andar despojado de outros recursos argumentativos e de luzes que lhe aclarassem a heresia da sua tirada.

– Isso não! Valha-te Deus, homem! – retorquiu, espontâneo, o pacato Mangelino, ao mesmo tempo que a ideia do Gabriel iniciava, sozinha e sem prévia autorização, a sua carreira fácil por dentro do íntimo do viúvo atordoado.

A Dona Isabel do ferreiro, pessoa mais atilada, aduzia argumentos de outra ordem:

– No fim de contas, a Ilda era uma boa mulher; deixou a triste vida e foi ela quem matou a fome aos garotos da Maria da Natividade quando Nosso Senhor a levou com aquela doença maldita. Que Nosso Senhor a tenha…

Ilda repousava no casebre escuro, alheia ao murmúrio do povo na rua, à porta, parecendo tranquila por saber que mesmo depois de morta ainda havia quem dissesse mal dela, contrariamente ao que sempre acontece quando os vivos adquirem a firme segurança que o morto já não lhes poderá fazer disputa nem causar inveja, fontes de toda a maledicência; como se o momento da morte fizesse iniciar um prazo para se poder começar a elogiar alguém livremente e de forma farta, sem preocupações de aforro ou avareza.

Mangelino actuava dentro das suas capacidades mantendo-se mudo e quedo a maior parte do tempo. Mas o seu estado de natureza ia-lhe segredando que qualquer coisa havia que não estava bem. Amanhã vou ao bispo a Bragança, pensou. Não foi. Demoraria quase um dia inteiro a caminhar a pé. Nem a sua limitada destreza lhe concederia a necessária habilidade para aceder e se manobrar nos corredores curvilíneos na extremidade dos quais sempre se colocam os detentores dos poderes temporais e não só. Mangelino apenas podia lidar com coisas mais direitas e simples. O complexo aperreava-lhe o intelecto, contrariamente ao cabo da enxada, curto e recto. Tinha um problema a resolver, sepultar o corpo de Ilda. Os mais diligentes do povo estavam pior do que Pilatos, estavam de mãos não lavadas mas atadas ante a impossibilidade de rebelião sacrílega. Os outros faziam só de Pilatos, não enjeitando também a oportunidade de, por omissão, agradar ao Reverendo. Nunca Mangelino se sentiu tão desejoso do conforto da sua enxada que diariamente lhe moía o corpo, mas nunca lhe moera a paciência como moía agora o Senhor Prior, roliço em batina preta e de rubras bochechas encimadas por um capelo pardo de tanto uso.

Na próxima semana O CLARIM publica a segunda e última parte deste conto.

Jerónimo Santos

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