Peregrinar, fazer caminho
Muito se tem escrito e debatido sobre a essência das religiões. O lugar, a manifestação, o sagrado identificado num momento e num tempo, o ritual e a participação nesse sagrado; tudo complementa uma definição que é sempre incapaz de reter em si a totalidade da definição. Mas em todos estes aspectos, o factor humano encontra-se com o divino no movimento para, no ir a, no caminhar, no fazer-se peregrino, no andar “através dos campos”, como o étimo latino da palavra nos indica (per+ ager). Desde tempos imemoriais, que em todas as religiões se peregrina, se buscam lugares sagrados e se consolidam caminhos nas tradições, nos gestos e nos imaginários. Muito dos lugares mais fortes de memória e de simbolismo religiosos têm na viagem o seu momento quase genesíaco. Em quase todas as religiões o calendário é marcado pelo ritmo da visita aos santuários.
Nas tradições cristãs, há registo de peregrinações à Terra Santa a partir do Século II. Os crentes queriam visitar os espaços da vida e do martírio de Jesus e dos seus mais diretos discípulos. De resto, seja pela ida às origens, a Jerusalém e a outros lugares da vida do Cristo, seja pela visita à cabeça da Igreja, a Roma, seja, ainda, pela visita a um sem número de santuários, locais ou regionais, o Cristianismo será uma religião da viagem e do caminho.
Desde muito cedo que na costa atlântica da Península Ibérica, onde hoje é Portugal, se instalaram sazonalmente gentes de outras regiões que comerciavam e vinham em busca de minérios. Mas estas gentes eram mais que comércio, eram histórias de viagens, de aventuras, de feitos e de riquezas. Eram gentes com novas religiões, novos deuses, reverenciadoras de outros locais sagrados. Cedo podem ter despoletado a vontade da descoberta, da deslocação a esses outros locais sagrados.
O Cristianismo nascente irá também nesta região vivenciar, desde muito cedo, este sentido da peregrinação, talvez herdado desse passado não muito distante. No Século IV, Egéria escreveu uma descrição da sua viagem à Terra Santa, entre 381 e 384 (as datas aceites mais comummente), que lhe outorga a consideração de primeira escritora hispânica em língua latina. Atravessou o Sul da Gália e o Norte da Itália; cruzou de barco o mar Adriático. Chegou a Constantinopla em 381, e daí partiu para Jerusalém, visitando Jericó, Nazaré e Cafarnaum. Partiu de Jerusalém para o Egipto em 382, visitou Alexandria, Tebas, o mar Vermelho e o Sinai. Visitou logo Antioquia, Edessa, Mesopotâmia, o rio Eufrates e a Síria, de onde regressou via Constantinopla. Não há registo da data, do lugar e das circunstâncias da sua morte.
A presença islâmica, o estar virado para Oriente, rezar e ir nessa direcção, irá consolidar esta ideia fundamental ainda hoje presente na linguagem: o verbo “orientar” – que significa, em sentido estrito, colocar um mapa de acordo com os pontos cardeais, mas que significa, ainda, descobrir um caminho, organizar – tem como raiz “virar para oriente”, exactamente no sentido oposto à forma como mentalmente se concebia o próprio espaço ode se vivia, o Ocidente, o Algarve, na raiz árabe.
LIVRO
A obra “Festas e Romarias – Lugares de Fé” não pretende ser nem uma recolha dos lugares sagrados e das peregrinações em Portugal, nem, sequer, um elenco representativo desta religiosidade centrada no caminho que desagua em festa.
Numa tradição de milhares de anos, seria longa e inesgotável uma lista dos lugares de romaria e festa cíclica em Portugal. O Cristianismo, como bem nota, num tom de dura crítica, Martinho de Dume no seu De Correctione Rusticorum(Da Correcção dos Rústicos), do Século VI, integrou uma parte muito significativa dos cultos politeístas anteriores, sejam os que mais perduraram no tempo, os lugares altos, muitos com culto desde a Idade do Bronze, sejam as festas em honra de rios, de nascentes e de bosques. Esta herança deu a Portugal um colorido ímpar e uma riqueza de tradições que percorre o País de norte a sul, do interior ao litoral, num sem número de matizes entre o passado pagão e uma cristianização quase sempre superficial mediante uma fraca mudança de roupagem ou de nomenclatura.
Em todos os casos a presença cristã faz-se nos momentos solenes, de oficialidade e com muita presença no tecido social. Muitas vezes essa presença religiosa normativadora parece ser tolerada ou aceite porque valorizadora do momento – acrescenta sacralidade. Mas quantas vezes essa presença tem um tom de artificialidade que nos faz perceber a tensão existente.
Os lugares aqui tratados procuram uma certa representatividade, seja geográfica, seja temática. Este foi o principal critério: a geografia e a tipologia. Assim, muitas importantes festas minhotas ficaram fora deste roteiro, tal como foram integradas algumas outras, não pela quantidade de pessoas que conseguem agremiar à sua volta, mas por serem quase fósseis que nos permitem chegar a um fenómeno quase desaparecido, com marcas antiquíssimas de continuidade de culto.
Por fim, temos ainda um espaço inevitável para a natureza pessoal da escolha. O leitor irá perceber que em muitos dos locais trabalhados há uma parcela importante do investigador. Sejam as suas memórias de infância, sejam os seus motivos de trabalho, muito da subjectividade do autor se encontra no elenco apresentado. É o lado poético da investigação que neste trabalho se assume com um peso muito grande. Se estes lugares são continentes de valor para quem os visita e neles vive a sua fé, o trabalho em torno dele não poderá ser, simplesmente, de natureza descritiva.
E aqui, a descrição pretendeu ganhar os matizes das paisagens envolventes e participantes, seja o humano ou o natural. Nunca uma análise apenas do campo da História poderá fazer jus à intensidade com que estas festas são vividas, à essencialidade depositada na forma como as populações se deslocam e peregrinam.
Quanto da paisagem é fundamental na criação do “espírito do lugar”? Quanto da forma como se vive esse lugar é o fulcro da religiosidade, dos anseios e das expectativas mais humanas de cada indivíduo?
Foi este o caminho, muito pessoal, e profundamente sentido, que procurámos fazer, caminhando por Portugal ao longo de dois anos a tentar captar, com um olhar impressionista, as vivências e as essencialidades das festas e dos lugares sagrados.
PAULO MENDES PINTO
Clube do Colecionador