A Bíblia poliglota e o “Monoteísmo Divino” do Acbar
Chega o transnacional trio de jesuítas (aqui mencionado na semana passada) a Fatehpur Sikri, a 28 de Fevereiro de 1580; e desde logo demonstra estupefacção face aos palácios, mesquitas e jardins que lhes surgem pela frente. “É uma encantadora cidade, sem paralelo na Europa”, adjectiva Monserrate. O imperador Acbar recebe-os com toda a cordialidade e guarda numa caixa de ouro no recato dos seus aposentos uma Bíblia real poliglota que lhe oferece Acquaviva. A mesma levaria sumiço durante o cerco a Lucknow em 1857. Disso nos dá conta, no segundo volume do “Oriente Conquistado a Jesus Cristo pelos padres da Companhia de Jesus da Província de Goa”, o padre Francisco de Sousa, especificando que o texto sagrado, em quatro idiomas, estava “lindamente encadernado” e totalizava “sete volumes”. De resto, o padre Emanuel Pinheiro (1595), um dos primeiros jesuítas na corte mogol, testemunha mais detalhadamente esse gesto: “Então ele [Acbar] mostrou-nos os seus livros, que eram muitos e bons: como a Bíblia Real e outras Bíblias, Concordatas, quatro partes da ‘Sumtua’ de São Tomé, uma obra contra os pagãos e outra contra os judeus e sarracenos, etc., os escritos de Santo António, a ‘História Pontificum’, a Crónica de São Francisco, Silvestre, Navarrus e Cajetanus; também as ‘Leis de Portugal’, os ‘Comentários de Afonso de Albuquerque’, os estatutos da Sociedade de Jesus, os ‘Exercitia’ e o ‘Ars’ do padre João Álvares e vários outros livros. Deu-nos tantos quantos pedimos. A saber. Todos os acima mencionados”.
A Bíblia real poliglota [ou Bíblia Regia, como também é conhecida] fora expressamente impressa para Filipe II, pelo francês Christophe Plantin (1569-1572). Todo o espólio, juntamente com outros documentos valiosos, seria resgatado, na altura do motim, por um certo “senhor Nazareth” (certamente um ferengi, luso-descendente), mas eventualmente, por razões que se desconhecem, acabaria por ser vendido como papel velho num dos mercados da cidade de Lucknow.
Feita esta nota, retrocedamos aos primeiros dias dessa primeira delegação missionária na corte de Acbar, príncipe que desde tenra idade convivera com sufis e dervixes, os elementos mais místicos do monolítico e dogmático culto islâmico. Mais tarde, já coroado, procuraria o mogol aprender junto dos seus súbditos hindus, jainistas e pársis, sendo apenas natural que desejasse agora estender a sua curiosidade à religião cristã. E muito embora (como defendem alguns historiadores) se possa alegar que a convocatória jesuíta tinha como único fito assegurar o serviço litúrgico aos inúmeros mercenários e funcionários europeus no rol de pagamentos do império, na realidade, os factos comprovam, como lembra Edward Maclagan, que Acbar buscava genuinamente “uma religião que satisfizesse as suas necessidades pessoais”.
Tão pouco é de excluir a vontade de Acbar em criar um culto sincrético agregador da vasta plêiade de almas presente dentro das fronteiras do império. Os mais altos cargos do Estado continuavam em mãos muçulmanas, mas aqui e ali, com a cautelosa acção de Acbar, haviam sido introduzidos elementos hindus. Nomeações do género para funções de monta encontrariam porém, não raras vezes, violenta oposição. Vem de longe o mútuo ódio que ainda hoje cega muitos dos elementos das comunidades hindu e muçulmana. Menciona Monserrate, no seu relato, os muitos templos hindus destruídos pelos maometanos; e a pretexto das escaramuças, com os templos iam também as vacas e os “infiéis, directamente para o inferno”. Enfim, aperceber-se-ia bem depressa Acbar da inviabilidade de uma coexistência pacífica, “apesar das genuínas tentativas de fusão das duas religiões levadas a cabo por diversos sábios e místicos”. Portanto, impor a todos um terceiro culto, se possível estrangeiro, parecia ser a única maneira de resolver o imbróglio comunitário. Ora, o Cristianismo preenchia suficientes requisitos, apresentando-se desde logo como sério candidato.
Até à tentativa de introdução do seu projecto religioso, o “Tauhid Iliihi” (Monoteísmo Divino), Acbar ensaiaria outras soluções, entre as quais o Cristianismo. E para tal havia que entender quais eram os seus princípios basilares; daí o escrutínio a que foram sujeitos os nossos padres. De acordo com o relato do catalão feito cronista, “os cortesãos passaram o primeiro dia questionando a autenticidade da Bíblia, tendo depois diversas conversas acerca do Paraíso”. O debate durará quatro dias e a determinado momento é abruptamente interrompido devido a uma mal enquadrada comparação entre Maomé e Jesus que deixa Acbar melindrado. Apressam-se os jesuítas a lembrar-lhe as condenatórias palavras dos cacizes em relação a Jesus, “um pecado em si”, acalmando desse modo o imperador. Para melhor entender a tolerância do mogol, recorde-se que, aquando a chegada da missão a Fatehpur Sikri, Acbar, embora muçulmano professo, havia já abandonado a ortodoxia, exigindo até aos principais ulamas e assessores um pronunciamento reconhecendo como legítima (obrigatória, portanto) a sua interpretação do Islão, “para o bem estar da nação”.
Joaquim Magalhães de Castro