O sincretismo de Acbar e a sua simpatia pelo Cristianismo
Acbar, agradado com a presença dos padres deu-lhes total liberdade para pregar e fazer conversões. E quando um deles morreu, permitiu que fosse enterrado com a maior solenidade. Em sua honra marcharia pela cidade uma grande procissão, com cópia de gente ostentando crucifixos e velas acesas. O monarca mogol autorizaria a construção de um hospital, assistindo-se desde logo no Norte da Índia ao início de algo semelhante àquilo que é hoje designado de “missão médica”.
Sempre que surgissem dificuldades – ordenara em nota oficial Acbar – deveriam os padres consultar o ministro Abu’l Fazl; a ele deveriam confiar todos os seus problemas, do mesmo modo como o fariam caso estivessem perante o Grão Mogol. Abu’l Fazl, informam os anais, procurou junto dos jesuítas esclarecimentos acerca da Fé e seus dogmas, não estando certos os nossos padres se ele o fazia com intuito de vir um dia a abraçar o Cristianismo ou simplesmente para agradar ao rei e, assim, “poder-lhe dar informações fidedignas sobre o assunto”. Em todo o caso, os padres receberam ao longo da sua estada muitos favores de Abu’l Fazl, e também do médico do rei.
A atitude de Acbar quanto às religiões em contenda ideológica (e não só) naquela parte do mundo transparece nalguns interessantes coevos relatos. Que não tinha grande consideração pelo Islão dos seus predecessores, isso parece evidente… A questão era: até que ponto estaria ele preparado para largar tudo e abraçar a crença forasteira? Abu’l Fazl atribuía especial importância à influência dos “filósofos cristãos” na forma de pensar e no comportamento de Acbar, embora este não hesitasse em afirmar, com bastante franqueza, como anteriormente o havia feito na presença do padre Julião Pereira (o primeiro sacerdote a ser recebido na corte mogol), que considerava as doutrinas da Trindade e da Encarnação “verdadeiros empecilhos”. Se os pudesse ultrapassar, assegurava, estaria pronto a desistir do seu reino, “se necessário fosse”, de forma a poder aceitar a religião dos temidos e admirados “frangues”. Graças aos escritos dos jesuítas podemos inteirar-nos de três outros obstáculos a uma possível conversão do imperador mogol. Primeiro, Acbar era mau ouvinte e jamais escutava uma explicação até o fim antes de enveredar num novo tema de conversa. Depois, mostrava-se incapaz de largar mão a uma que fosse das suas múltiplas esposas. Finalmente, supersticioso, como todos os orientais, aguardava ainda um sinal divino – como o era a famosa “prova de fogo”, por exemplo – mas nenhum sinal lhe havia chegado ainda.
Acantonados na amuralhada Fatehpur Sikri os clérigos da Companhia não hesitaram em descrever-nos, em diversas ocasiões, a postura religiosa de Acbar. Garantem que não era, de todo, maometano, mantendo sérias reservas em relação a esse e demais credos. Segundo ele, não existia nenhuma forma “divinamente credenciada de fé”, porque em todas elas encontrava algo capaz de “ofender a sua razão e inteligência”. Para Acbar, cartesiano “avant la lettre”, tudo podia e devia ser compreendido pela razão. Porém, às vezes, admitia que nenhuma fé o cativava tanto quanto a “Fé do Evangelho”. Dizia: “quando um homem acredita que esta é a Fé verdadeira e a melhor de todas as outras, está a meio caminho de vir a adoptá-la”. A verdade é que entre os súbditos do vasto império circulavam várias opiniões a respeito do imperador. Asseguravam alguns eminentes da Corte que não passava Acbar de um pagão, adorador do Sol. Outros, pelo contrário, garantiam que o soberano, pela proximidade mantida com os sábios estrangeiros, só podia ser cristão. Outros ainda alegavam pretender fundar uma nova seita o convivial nobre turco-mongol… Os mais inteligentes, entretanto, nem o consideravam nazareno, nem gentio, nem muçulmano, antes um misto de todas essas religiões. E por essa razão o tinham em grande estima! Fosse qual fosse a crença de Acbar naquela época, certo é que, tão óbvios sinais de um pensamento livre e autónomo caíram bastante mal entre os variados sectores muçulmanos, sobretudo os adeptos da ortodoxia… Houve mesmo uma poderosa facção da Corte, onde constava a mãe de Acbar e uma sua tia recentemente regressada da peregrinação a Meca, que tudo fez para frustrar as suas supostas inclinações para o Cristianismo.
A rebelião que eclodiu em Bengala no início de 1580, pouco antes da chegada dos jesuítas a Fatehpur Sikri, e a subsequente aliança do meio irmão de Acbar ao rebelde Mirza Hakim, em Cabul, tiveram como principal justificação um alegado desprezo e desrespeito do imperador pelos preceitos e tradições do Islão. Os cronistas jesuítas, aliás, dão a entender que essa revolta teria sido provocada por súbito e inesperado pendor de Acbar para o Cristianismo. Monserrate, não obstante, descreve-a como “uma guerra principalmente empreendida contra a religião de Cristo”. No final do ano de 1580, a rebelião de Cabul atingiu o auge e o agora pretendente ao trono mogol decidiu marchar com os seus exércitos até Lahore. Acentuar-se-ia, como é natural, a animosidade muçulmana em relação aos missionários europeus. A fim de afastar as suspeitas, Acbar deixou de os receber na sua corte e de lhes conceder audiências. Mas foi uma medida temporária.
Joaquim Magalhães de Castro