Imperador Acbar, Padre Pereira e a presença de Cristo no Alcorão
Nesta nova série que hoje iniciamos permanecemos no subcontinente indiano, desviando, porém, o ponteiro um pouco para Oeste, e recuando à época do imperador Acbar, entronizado desde 1556, e o seu prumo hegemónico apontado para o Gujarate e materializado no cerco a Surate, início de 1573, cidade onde recepcionaria uma delegação de portugueses de Goa chefiada por um certo António Cabral. Era o primeiro contacto do mogol com gente europeia que bem impressionado o deixaria, por ser “corajosa e cortês”. Anos depois, acolhe Pedro Tavares, capitão da feitoria de Satigão, e a sua mulher, na corte de Fatehpur Sikri. Resultado: aumentaria a estima pela já então afamada grei do extremo oeste da misteriosa Europa.
Apoquentado por místicas dúvidas, Acbar mostra interesse pela religião professada pelos forasteiros, interesse redobrado após dois jesuítas recém chegados a Bengala terem recusado absolver alguns mercadores cristãos que haviam defraudado fiscalmente a autoridade mogol.
Entra em cena, por intermédio de Pedro Tavares, o cura de Satigão. Julião Pereira, de sua graça, é convocado a Fatehpur Sikri em Março de 1578. Consta que Pereira sabia o Alcorão de cor, o que não é coisa pouca. Ocupar-se-á doravante o prelado em expor a Sua Majestade os “erros do Islão” (Acbar ainda não o havia renunciado publicamente) e dele conseguiria toda a atenção, concorrendo favoravelmente com um dos cacizes mais influentes da Corte, cognominado “sultão de Meca”. Com ele e com os seus confrades discutiria longos e infrutíferos assuntos teológicos o nosso Pereira. Entrementes, Acbar pedia-lhe que lhe ensinasse Português, para assim melhor compreender as doutrinas do Cristianismo. “Pronunciar o nome de Jesus”, diz-nos Edward Maclagan, “foi a primeira coisa” que o padre lhe ensinou. E o imperador repetiria incontáveis vezes essa palavra com “o maior dos prazeres”.
Julião (Juliano ou Gileanes?) Pereira – possivelmente nascido na Índia, pois é apresentado pelos cronistas como “clérigo da terra” – teve a ousadia de apregoar aos quatros ventos, e a Acbar em particular, a declarada presença de Jesus num dos 98 versos do capítulo dezanove do Alcorão, o denominado Surah Maryam. O título desse capítulo (ou surah) inspira-se no nome de Maria, mãe de Jesus (Isa), a Virgem Maria na Fé Cristã, e relata os eventos que levaram ao nascimento de Jesus de Nazaré. O dito surah refere ainda outras figuras proféticas conhecidas, incluindo Isaac, Jacob, Moisés, Abraão, Ismael, Enoque (também conhecido como Idris), Adão e Noé. Nas suas conversas com o soberano este sacerdote, mais virtuoso que erudito, acabou por mencionar os padres do Colégio de São Paulo em Goa, apontando-os como as pessoas ideais para o elucidar sobre matérias de índole cristã. Convencido, Acbar despacha no final do estio de 1579 um embaixador para Goa com cartas suas destinadas ao vice-rei Dom Luís d’Athaíde, ao arcebispo e ex-bispo de Cochim, Henrique de Távora e Brito, e ainda aos padres do Colégio.
Como se vê, bem desde o início demonstra Acbar grande abertura de espírito e genuíno interesse na fé dos estrangeiros. Pede até que lhe enviem padres para assim poder aprofundar tão fascinante matéria. Entusiasmada, Goa despacha uma delegação jesuíta composta pelo catalão António de Monserrate, um persa de Ormuz, muçulmano convertido, chamado Francisco Henrique, e o italiano Rodolfo Acquaviva. Este, apesar de jovem, assumia a responsabilidade da missão pois era reconhecida a sua austeridade e dedicação à causa missionária, facto que, de resto, lhe valeria mais tarde a beatificação. Dele diz-se que tinha “disposição muito doce e tão simples que julgava a todos segundo seu próprio coração”. Apenas o estudo do Persa e uma ou outra ocupação necessária ao dia-a-dia interferiam nas suas actividades favoritas: a meditação e a oração. Os seus pensamentos estavam fixados em Deus e para evitar o cansaço enquanto caminhava cantava, suavemente em voz baixa, pequenas orações ou salmos.
Monserrate deixou na sua “Relação” preciosos e detalhados dados geográficos e antropológicos dos locais por onde passaram. Surate, Mandu, Ujjain, Sarangpur, Sironj, Narwar (onde Monserrate adoeceu), Gwalior e Dholpur, tendo a comitiva franqueado os portões de Fatehpur Sikri a 28 de Fevereiro de 1580. Era seu objectivo final a conversão ao Cristianismo do maior número possível de habitantes do Mogor. Porém, tendo em vista o entusiasmo e receptividade de Acbar por que não tentar a sua conversão? Monarcas da região rendidos aos ensinamentos de Cristo já não eram uma novidade. O rei das Maldivas e vários reis do Ceilão, por exemplo, tinham-se tornados cristãos, e “um parente próximo do rei de Bijipur fora baptizado em Goa logo após a chegada da Europa do padre Rodolfo”, como nos lembra Edward Maclagan.
Também no mais distante Arracão vários membros da família real tinham abraçado a Fé Cristã. “Não havia, portanto”, conclui Maclagan, “nada impossível ou fantástico no esquema da Missão e, como os Jesuítas eram reconhecidamente a Ordem mais bem preparada para lidar com tais casos, a Missão começou com esperanças de sucesso bem fundamentadas”.
Joaquim Magalhães de Castro