Pré-Quaresma no seminário de Ledalero

A força do vínculo religioso.

Aqui há uns anos, aquando a minha viagem pela Indonésia em busca do legado português naquele arquipélago, assisti a um casamento entre dois membros da comunidade luso-descendente de Maumere, capital da ilha das Flores. Estávamos a breves dias do início da Quaresma e essa era a última cerimónia mundana antes do período de reflexão e jejum, preceitos que aquela comunidade católica leva bastante a peito.

O padre que presidiu ao casamento quis saber coisas acerca de Portugal pois iria passar um ano em Lisboa, «para aprender Português». Moçambique era terra de futura missão. Laurensius Huller (assim se chamava) integrava o grupo de vinte padres que habitava então o Seminário de Ledalero nos arredores de Maumere, sede da Sociedade da Palavra de Deus ou Verbum Dei (SVD) e, pode-se dizer, cadinho intelectual das Flores e das ilhas circundantes que constituem as Sundas Meridionais.

Acompanhava-o um jovem chamado Hubert, que durante cinco anos fora estudante em Curitiba, Brasil. A qualidade do seu Português era tal que se dava ao luxo de me contar algumas das anedotas sobre portugueses mais comuns entre os brasileiros.

Hubert lidava com vistos e outra papelada burocrática, tentando assim ajudar os missionários estrangeiros residentes no País e os indonésios que pretendiam deslocar-se para locais como o Botswana, o Togo ou Angola.

Na manhã seguinte, no refeitório do Seminário de Ledalero – onde fui a convite de Hubert – foram-me apresentados mais alguns luso-descendentes: um Pareira, um Fernandes e um Da Silva. Juntos, almoçamos sopa, karapaus fritos, folhas e flores de papaia e salada de fruta. Hubert aproveitou para me falar do «bacalhau das Flores» e garantiu-me que, de acordo com uma tradição local, «nos casamentos entre os Black Portuguese é oferecido bacalhau à esposa como parte do dote».

Os padres norte-europeus presentes na sala mostraram-se pouco faladores e nada curiosos, num contraste absoluto com os seus pares indonésios que diziam piadas sobre mulheres e comentavam o «bom gosto dos portugueses» por se terem miscigenado. Até a Bunda Maria (assim se designa a Virgem Maria em bahasa) serviu de piada privada a Hubert, pois conhecia o significado que o termo “bunda” tem entre os africanos e os brasileiros.

O local que pisávamos tinha sido inteiramente destruído pelo devastador terramoto de 1992. Num epicentro imaginário, fora erguida uma igreja em forma de mesquita com a estátua do alemão Arnaldo Janssen, fundador, em meados do século XIX, da SVD, congregação com uma forte presença na Indonésia.

Recordo ainda o museu de Ledalero – “o maior e mais apetrechado de Nusa Tenguura”, como apregoavam as brochuras – constituído por uma pequena sala onde se amontoavam peças avulsas. Na biblioteca mesmo ao lado existiam milhares de livros, muito deles num estado de conservação lastimoso. Matérias religiosas, antropológicas e etnográficas redigidas sobretudo em holandês e alemão. O livro do jesuíta J.J. Visser, “De Katholieke Missie van Indonesie – 1511-1605”, deve conter imensa informação que nos diz respeito… Em Português, apenas um exemplar de Macau e a sua Diocese: “Timor”, do padre Manuel Teixeira.

Tive ainda a oportunidade de conhecer Philipus Tule, antropólogo, estudioso de assuntos islâmicos e reitor do Seminário Maior de Ledalero. O académico trouxe-me um exemplar de um livro da sua autoria que acabava de ser publicado na Suíça. «Enviaram-mo da Europa», dizia ele, «aqui é muito caro e quase impossível de encontrar».

Tratava-se do “Longing for the House of God, Dwelling in the House of the Ancestors”, um trabalho de antropologia sobre os keo, etnia à qual pertence. Philipus Tule recorda que os keo foram cristianizados pelos portugueses e, por isso, guardam algures, «não se sabe exactamente onde», a regalia que lhes foi oferecida: um tesouro constituído por espadas e capacetes, entre outros objectos.

Após a partida dos portugueses, os keo, que habitam uma série de aldeias na costa sul das Flores, em frente à ilha de Ende, voltariam às práticas animistas, para serem reconvertidos pelos homens da SVD, já no início do século XX.

Na sequência do seminário “As Flores e os Portugueses: da interculturalidade à cooperação diversificada”, organizado em 2005, em Maumere, que preconizava «a criação de equipas luso-indonésias de especialistas na herança portuguesa e a publicação de monografias», Philipus Tule acabaria por ser eleito secretário executivo do Secretariado para o Conselho Cultural das Flores, criado na sequência do seminário «para promover a cooperação entre os regentes». Contudo, essa entidade nunca chegou a funcionar em pleno «devido à falta de apoio dos regentes», e também devido ao já costumeiro alheamento das autoridades portuguesas no que respeita a matérias desta natureza.

Uma das ideias lançada pelo padre Tule era «a promoção dos valores católicos das Flores como atracção turística, à semelhança do que acontece em Bali», cuja actividade turística envolve não apenas as praias mas também a cultura hindu, como se sabe.

Em 2007, Philipus Tule acompanhou uma delegação de Sica (povoação de luso-descendentes) a Portugal, tendo sido firmada «uma carta de intenções para fazer de Sica e Lagos cidades geminadas». Estava previsto, no seguimento desse projecto, visita posterior de uma delegação de Lagos a Sica, o que nunca chegou a acontecer…

Graças ao blogue de Feliciano Sila, missionário do Verbo Divino, natural de Timor Ocidental, actualmente a residir em Portugal, voltei a ter notícias de Ledalero, isto a propósito da recente ordenação, naquele Seminário, “do jovem confrade Dominggus Gudinho de Araujo, natural de Timor Leste, com destino missionário para Portugal”. O timorense foi “ordenado diácono no Seminário Maior de São Paulo, em Ledalero, ilha de Flores, na Indonésia, juntamente com outros dezasseis colegas da mesma congregação”. Quanto mais não seja, pela via da religião, os contactos luso-indonésios não desistem de se perpetuar.

Joaquim Magalhães de Castro

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