Portugueses de África

Um êxodo com quatro décadas.

Licenciado em Ciências Políticas e Sociais pelo Instituto Superior Colonial, Vasco Rodrigues é de uma família originária da Madeira e viveu em Lourenço Marques treze anos. O pai era oficial de Marinha, «primeiro na Hidrografia, e depois nos Serviços Geográficos e Cadastrais». Foi ele o autor, nos idos de 1950, de uma infra-estrutura capaz de fazer fotografias aéreas de todo o território e com base nelas desenhar mapas. E com um rigor fantástico. «Nada havia de semelhante em Portugal». De 1962 a 64 esteve destacado na Guiné e depois regressou com a toda a família.

Vasco Rodrigues não foi, portanto, testemunha da época conturbada que se seguiu, mas está bem informado acerca dos acontecimentos. Afirma: «É preciso ter em conta que os portugueses que integraram o êxodo de 1975 viviam, na altura, num território que era português, e há muitas gerações. Moçambique era também Portugal. E a essa gente nunca lhes passou pela cabeça ter de fugir, exilada, do seu próprio país!».

Chegados à metrópole foram tratados, não como parentes pobres, antes como um mal necessário. «Vamos lá ver o que se pode fazer por vocês», foi a atitude por parte das autoridades da altura. Quanto à população, em geral, contemporizou, permitindo alguma integração. Até porque quase todos em Portugal tinham familiares ou amigos no Ultramar. E neste quadro houve, de facto, inúmeros actos de solidariedade.

Como bem se sabe toda essa gente chegou «de barco, de carro, de avião». Um grupo de pescadores de Angola e Moçambique, por exemplo, chegou de traineira, sem bússola ou radar e com pouco dinheiro. Houve casos de portugueses que saíram do sul de Angola e atravessaram a Costa dos Esqueletos com viaturas particulares em terrenos arenosos nada propícios a veículos motorizados, nem mesmo aos jipes. Nunca ninguém tinha feito algo de semelhante. Estas e outras histórias extraordinárias mereciam ser contadas pois permanecem desconhecidos do grande público. «Nunca lhes foi dada a dimensão devida. Refiro-me a um trabalho honesto por parte dos media, uma coisa conjugada», diz Rodrigues. Convém lembrar que estamos a falar de um milhão de deslocados, vítimas de uma descolonização irresponsável.

Na opinião do nosso entrevistado, o principal culpado dessa «operação em cima do joelho» foi o Estado português, representado pelo Governo de então. «Se tínhamos aguentado a tal famosa guerra, em que morreram não sei quantas pessoas, e os territórios estavam praticamente todos destruídos – viu-se, após a independência qual era o grau de destruição… – tinha-se chegado naturalmente a um período de transição», remata.

No entender de Vasco Rodrigues «se o Estado português assumiu que havia de ser dada a independência, só tinha de cumprir com o compromisso». Acontece que todo o processo deveria ter sido faseado, como sempre fez a Grã-Bretanha. Assim ter-se-ia evitado a guerra fratricida e sangrenta que se seguiu. «Penso que estavam criadas as condições para que as coisas fossem ao encontro dos interesses de ambas as partes. Claro que isso se tornou muito difícil, tendo em conta que havia facções em Portugal que tinham decidido que a sua única razão de existir era a entrega do Ultramar».

Rodrigues prefere não mencionar quais eram essas facções, «pois ficávamos aqui o dia inteiro a falar…».

Angola e Moçambique são territórios extremamente ricos. Foi descoberto petróleo neste último país, fruto dos anos que a Gulf Oil andou a esgravatar na região. A costa moçambicana é vital para os países do interior e da própria África do Sul. Já para não falarmos da riqueza do solo. Há zonas onde, se preciso for, se fazem duas colheitas por ano. O sul de Moçambique era um dos maiores produtores de arroz de África. Arroz de altíssima qualidade. E, sabemos bem como é, «a riqueza provoca a cobiça alheia».

Rodrigues considera que a gente das ex-colónias tem características próprias, «são pessoas empreendedoras, que desenvolveram obras de grande vulto, com uma dimensão que não havia na metrópole. Tinham, para além disso, uma abertura de espírito maior. A solidariedade era um valor muito prezado. Muitos deles conseguiram, apesar de estarem com 50 e 60 anos, refazer a sua vida e hoje dão cartas na nossa economia. Nunca foi realçado o contributo destes ditos retornados para o crescimento do País».

Mas a maioria desses espíritos empreendedores foi para fora, pois não se adaptou a um novo modo de vida europeu. Rodrigues acredita que houve até um esforço político no sentido de que essas pessoas partissem.

E por que razão? «Talvez por serem incómodas, pois no fundo tratava-se de pessoas a quem tudo foi retirado». Como é que se pode pactuar com uma coisa destas? Rodrigues responde com um exemplo: «Imagine que vai para a Madeira, que aí vive mesmo não sendo madeirense, e que de repente alguém decreta que a Madeira deixa de ser portuguesa e passa a ser a República dos Maracujás. Passou-se algo de semelhante em Moçambique. Os que tinham algum poder económico foram disseminados pelo resto da população. Chegou a haver casos caricatos, como o de um reputado cirurgião que foi posto a plantar batatas, tudo em nome do progresso do País. As pessoas foram perseguidas não só pelas suas aptidões profissionais, mas também pela cor da pele e pela sua nacionalidade».

Na verdade, é que se essa gente não tivesse partido corria o risco de perder a vida, como aconteceu a muitos. «Imagine que está no seu escritório e lhe vêm dizer que amanhã vai ser preso, sem qualquer culpa formada. Como é que reage a uma situação destas? Nos arredores de Lourenço Marques houve pessoas que foram queimadas vivas dentro dos automóveis. Nunca foi feito um trabalho de investigação jornalística a sério sobre esta matéria. Nunca foram publicadas fotografias na imprensa. Mas essas fotografias existem. Fotografias de soldados portugueses a entregarem-se, nus ou de cuecas, quando vinte e quatro horas antes estavam perfeitamente operacionais. Há alguma coisa de estranho em tudo isto. A história vai sem dúvida falar disso mais tarde ou mais cedo».

Joaquim Magalhães de Castro

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