Uma longa espinha dorsal
Uma estafada de dezasseis horas e ainda estou a meio caminho, que isto de chegar ao durame de Arracão continua a não ser tarefa fácil. Escrevo estas linhas no conforto de um quarto de hotel, rebobinando o filme da longa jornada. Vamos a ele:
Fiz questão de cumprir a viagem Rangum-Arracão por terra, e para tal houve que madrugar. Tinha assento reservado no Tropical Island Express da New Generation com destino a Ngapali Beach e ponto de partida no Aung Mingalar Highway Bus Station, pese o pomposo nome, simples entreposto rodoviário de terra batida, caótico quanto baste, a uns vinte e tal quilómetros da baixa da cidade, jornada que teve de ser feita em duas mangas. Na primeira, num esclerosado táxi cujo motor não desenvolvia, e cedo me apercebi de que não me levaria a lado nenhum. Na segunda, por um bem mais folgado consorte automotivo que o pobre do taxista contratado miraculosamente conseguiu desencantar na avenida semi-deserta e ainda envolta em completa escuridão. Foi, portanto, um despertar de loucos, um sufoco, mas acabei por chegar ao terminal rodoviário, ia-se aos poucos instalando-se o dia que se anunciava abrasador, antes do horário da partida.
Apresentava-se de boa cara o alaranjado veículo destinado a transportar-nos ao sempre ansiado mar. Por altura da chegada à cidadezinha de Nyaungdon, terra de poetas, artistas plásticos, músicos e actores, deparamos com um plácido e distendido Irrawaddy, e foi ao longo da sua margem oeste que progredimos umas boas dezenas de quilómetros para Norte, até Danubyu – curiosa coincidência fonética para designar uma povoação plantada na margem de um largo e profundo rio… Terra de plantações de tabaco e arrozais, em Danubyu se reabasteceu o exército de Tabin Shwehti, a caminho da conquista de Prome, em 1544 (estando aos remos de uma das embarcações o cativo Fernão Mendes Pinto), e em Danubyu perderia a vida Maha Bandula, um dos mais prestigiados generais de Alaungpaya, aí escudado após a derrota na batalha de Rangum, no decorrer da Primeira Guerra Anglo-Birmanesa (1824-1826). Bandula foi atingido por uns estilhaços enquanto no dorso do seu alazão tentava levantar o moral das tropas. Mas continuemos com o relato da viagem:
Horas depois de continuados safanões, se bem que no bem bom do ar condicionado que nos obrigava a usar o cobertor gentilmente disponibilizado, juntamente com a garrafa de água e a merenda acomodada numa caixinha de papel igual às dos Pastéis de Tentúgal, chegamos a uma dessas cidades com nomes impronunciáveis – Ngathaingchaung de sua graça –, nas margens do rio Pathein, que mais não é do que um afluente do Irrawaddy, aqui quase a meio caminho da cidade homónima, o “nosso porto de Cosmim”, tendo sido por essa razão vezes sem conta palmilhado por mercantes, padres e trotamundos portugueses. Continuamos em terreno alisado, bem acima dos esguios dedos do delta que permitem fazer a viagem sem grandes travessias fluviais.
Cumpridos 190 quilómetros de percurso, eis-nos no sopé da cadeia montanhosa de Arracão, verdadeira espinha dorsal com quase mil quilómetros; barreira natural entre os povos das planícies centrais birmanesas e os do subcontinente indiano, e factor decisivo para o desenvolvimento do carácter distinto do povo arracanês, linguística e culturalmente falando, tendo-se constituído aí uma entidade política própria, com as cidades costeiras de Waithali e Mrauk U como núcleos civilizacionais. Logrados sairíam, devido ao providente acidente topográfico, os sucessivos intentos de invasão birmaneses.
A estrada serve de linha fronteiriça às reservas naturais de Kyetpaung, administrada por Pathein, e de Yoma, a cargo das autoridades de Arracão. Ambos constituem pretensos santuários dos elefantes que apesar de tudo ainda restam, como lembram alguns dos cartazes da Human Elephant Peace Project (é sua missão proteger os paquidermes asiáticos e o seu habitat) colados num dos pequenos restaurantes de bambu e tecto de zinco onde paramos para almoçar e exercitar as pernas. Aquele onde comemos exibe, a par com a foto de Aung San Suu Kyi, por via das dúvidas, relevante aviso, em Birmanês e Inglês: “Neste estabelecimento não vendemos refeições com carne de animais selvagens”. Acompanham o latinório imagens elucidativas de ursos, pangolins, tartarugas, lebres, macacos, cervos, veados, serpentes, búfalos e perdizes. Mesmo ao lado, reforça-se a mensagem: “Neste estabelecimento não se vende nenhum produto feito com animais selvagens”. Fotos daqueles artefactos que as mulheres tanto gostam, em marfim ou dentes de bravio felino, complementam as sábias palavras. Este é o único local com sinais de presença humana e, vá lá, uns quantos simpáticos recos de pelugem negra deitados no chão poeirento à sombra de um jaqueira bem recheada com esse fruto que à semelhança do tomate é mais legume do que fruto. Uns monótonos setenta quilómetros de travessia florestal, vegetação rasa e esparsa, numa contínua acumulação de pequenos montes a perder de vista, amenizados, por fim, pelas magníficas vistas do Mar de Andamão azul profundo, quando iniciamos a fase descendente de curvas e contracurvas até Gwa, povoação costeira piscatória e o meu primeiro contacto com o Arracão.
Joaquim Magalhães de Castro