Património Histórico e o Trânsito em Macau

Respirar é preciso

Começo com uma pergunta oportuna: será que Macau continua a merecer a distinção de Património da Humanidade, depois do tudo que foi destruído e do que, em termos de recuperação urgente, continua a ser protelado? Que a cidade tem peças de grande valor patrimonial, não há dúvida. Prova disso são os monumentos e os sítios já classificados. Só que um monumento isolado perde as referências do seu contexto e, como todos sabemos, não existem edifícios isolados, tal como em sociedade não existe um só indivíduo. É importante que Macau mostre uma verdadeira atitude de preservação do património. Começando, por exemplo, por resolver de um vez por todas o imbróglio que é a antiga fábrica de panchões de Iec Long, recuperando esse espaço vital, transformando a zona envolvente em parque público, submetendo depois o projecto à aprovação da UNESCO. Seria até justo, pois na candidatura apresentada não constou qualquer monumento da Taipa ou de Coloane. Quiçá não seria, no futuro, esse o precedente para outras aprovações. «Seja como for, o património tem sempre valor, independentemente de ser ou não classificado pela UNESCO. Em relação à fábrica de panchões, que era uma indústria muito importante para Macau, muitas famílias dela dependiam para a sua sobrevivência, há ali um valor acrescentado», dizia-me em tempos o arquitecto Francisco Vizeu Pinheiro, que fez do Iec Long um dos seus cavalos de batalha.

O trânsito infernal continua a ser o principal factor impeditivo de o normal fluxo de pessoas. A cidade é como o corpo humano e, por isso, há que lhe encontrar uma solução global, holística. Em muitas das cidades europeias as zonas históricas são de acesso pedonal. Aí é criado um ambiente clássico e relaxante que é de extrema importância, pois o visitante sente-se de imediato envolvido por ele. O problema do trânsito, que acarreta diversos tipos de poluição, é, realmente, um problema que não se pode continuar a adiar e que se tem vindo a agravar com a crescente torrente de turistas que todos presenciamos. Claro que a solução não é destruir a zona antiga da cidade, antes recuperá-la e torná-la atractiva. Bem sabemos que para além de umas quantas bolsas de património histórico resistentes a construção é extremamente feia, daí que haja necessidade absoluta de tentar debelar o problema com directrizes e normas (como acontece noutros países) que regulem o tipo de fenestração, a altura dos edifícios de forma a que se possa manter uma certa uniformidade. Não são os edifícios isolados que fazem a cidade, antes a aglomeração dos mesmos. O problema é que essas bolsas do património preservado – caso do Tap Seac, do bairro de São Lázaro, do Lilau – continuam sem grande utilidade visível pois há anos se encontram vazios. E não se pode dizer que seja por falta de dinheiro para as pôr a funcionar. Há que pensar primeiro em vários projectos alternativos – para ver qual é a melhor solução de sustentação económica, turística e cultural – e, só depois, implementá-los. Entretanto, há que evitar a todo o custo a introdução de elementos que possam interferir com a uniformidade e a beleza do conjunto. Algo foi feito, é certo, no que se refere ao largo de São Lázaro, mas todo o Lilau, por exemplo, continua deserto.

Fundamental mesmo seria o corte do trânsito na Rua do Campo e na Rua das Mariazinhas, para uma ligação harmoniosa entre o Leal Senado e o bairro de São Lázaro e, por extensão, todo o Tap Seac e a zona verde e de lazer do Monte da Guia. Enquanto houver a barreira automóvel, nem o comércio há de prosperar nem os turistas aí se deslocarão. Lembro-me de Vizeu Pinheiro propor que se escavasse um túnel do McDonald’s ao extremo do jardim Lou Lim Ieoc. «Por vezes, as soluções mais audazes são as que funcionam melhor», dizia ele. Defendia ainda este arquitecto a escavação de um túnel entre as imediações do Leal Senado e a Ponte Cais 16, transformando a Almeida Ribeiro em zona pedonal e revitalizando assim o comércio na área, na Zona Norte e no Porto Interior.

A forçada interrupção da ligação do templo A-Má ao mar, «um atentado contra o fung-soi», e consequente cessação de passeios turísticos da lorcha Macau, foi um erro crasso, pois, como lembrava Vizeu Pinheiro, «existe uma tradição nesse templo de ter a montanha por detrás, o dragão, e a água pela frente. Com um bocado de cuidado poder-se-ia ter chegado a outra solução. O que me parece é que há falta de coordenação entre os diferentes departamentos e instituições. Hoje em dia, nas cidades similares a Macau, caso das cidades europeias e sul americanas, há uma estreita coordenação entre as instituições. É na fase de preparação dos projectos que deve existir conjugação de esforços entre as instituições que intervêm na cidade e os especialistas do mundo académico, para que juntos possam encontrar uma solução que permita manter as características históricas do território, já que é essa a política que interessa: manter Macau diferente, única. Enfim, é preciso envolver mais pessoas, senão corre-se o risco de fazer projectos “fast food”, comida rápida mas sem qualquer sabor local».

Outro dos locais que perdeu algumas das suas características é o Largo do Senado. E perdeu-as por excesso de actividades num espaço que devia, digamos assim, respirar bastante mais. Exemplo de uma intervenção urbana bem feita, já que de zona de estacionamento passou a espaço aberto de cultura e comércio, o Leal Senado está neste momento saturadíssimo, daí a importância de serem criados projectos similares recorrendo à mesma linguagem clássica, e assim aproveitar para reabilitar outras zonas da cidade, sejam elas no Porto Interior ou na Taipa. E, neste sentido, o Iec Long era uma zona óptima para este tipo de actividades que tendem a aumentar com o número de turistas. Não basta recuperar, é preciso saber recuperar. Será que Macau sabe mesmo recuperar?

Joaquim Magalhães de Castro

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