Passeios por Havana – 1

Descapotáveis e alojamento local.

Percorro meia El Malecon com o passeio bastante maltratado, ainda por recuperar da devastação provocada pelo Irma, o furacão vedeta do ano transacto, e não me canso de ver passar, uns atrás dos outros, Chryslers, Dodges, Cadillacs, Buicks e Chevrolets de cromados bem polidos e flâmula desfraldada no topo da antena colocada na rectaguarda da viatura, verdadeiras beldades descapotáveis levadas a passear por motoristas trajados a rigor. Apetrechos obrigatórios: camisa floreada e panamá na cabeça. Estas viaturas são e continuarão a ser pelas décadas a devir, talvez, o mais importante “ex-libris” da capital cubana e motivo de atracção turística, pois há quem visite a ilha de Fidel apenas para poder usufruir dos seus espaçosos assentos com estofos de napa. É Havana, porventura, o local do planeta onde deparamos com a maior concentração por metro quadrado de carros vintage norte-americanos.

«Como fazem para manter em tão bom estado essas viaturas?», pergunto eu ao Hector, o jovem taxista que me conduz num Ford Thunderbird até ao aeroporto José Martí (tudo é José Martí em Cuba) a tempo de apanhar o avião da Iberia para Madrid, uma vez terminado o meu interregno caribenho. «Há sempre alguém que vive do lado de lá que nos arranja as peças necessárias», responde, lacónico. O lado de lá é Miami, a pouco mais de uma hora de distância num voo a baixa altitude sobre as tépidas águas do Golfo do México. «Mas não pense que o motor do meu carro é original», avisa logo o rapaz. «É de um Mercedes, caso contrário não ganhava para o combustível». Sim, dar de beber a relíquias daquelas é tarefa dispendiosa e apenas os que alugam a sua à hora e a bom preço a turistas endinheirados, «desses que não saem dos resorts de Varadero», podem dar-se ao luxo de manter o motor de fabrico. «É verdade que o seu cantar é muito mais agradável, mas esse privilégio paga-se», conclui Hector, visivelmente incomodado por não ser dono de um clássico puro sangue.

Eu chegara à ilha semana e meia antes, também à noite, e dessa vez calhara-me na rifa um Lada feito carro de aluguer, pertença de um senhor de meia idade muito bem educado que não se cansou de me agradecer a preferência, tendo-me até oferecido um mapa e dado algumas dicas. Alertou-me para os cuidados a ter com os aldrabões locais que têm como alvo preferencial os ingénuos que uma vez ali chegados baixam as defesas acreditando piamente ser o crime em Cuba uma quimera. «Tenha sobretudo cuidado com as raparigas», especificava. É verdade que os casos de violência são muitos raros, mas, em contrapartida, contos do vigário abundam em quantidade e variedade de enredos. «Esta é a praça da Revolução», dissera o homenzinho. E eu lá avistara, delineados em néons, os perfis de Guevara, Camilo Cienfuegos (desaparecido misteriosamente durante um voo nocturno em 1959) e do incontornável Martí, o pai da independência de Cuba e, por arrasto, do ideário revolucionário. Retratada no mapa, essa parte da cidade chama a atenção pela abundância de cruzes vermelhas indicativas de hospitais ou centros de saúde. Outro assinalável recorde: em parte alguma vi aglomeração tal dos ditos em tão circunscrita área. «O nosso serviço de saúde é inteiramente grátis», informara ainda o meu condutor. Grátis, para os cubanos, entenda-se. O turista está ali para gastar o máximo possível dos tão procurados quão necessários euros e dólares, por isso aos turistas aconselha-se seguro de saúde, pois as contas nas clínicas agregadas aos hotéis ou no hospital estatal reservado a estrangeiros, o Calixto García, são tão gordas quanto as das clínicas privadas europeias.

O señor Fuentes (assim se chama o taxista) continuava, ao longo do trajecto pouco urbanizado e com muita gente nas paragens aguardando os sempre lotados autocarros, a chamar-me a atenção para as mais-valias da cidade – a necrópole de Cristóbal Colón, um dos mais relevantes cemitérios históricos do mundo com mais de quinhentos mausoléus, entre os quais o do arcebispo Manuel Arteaga y Betancourt, perseguido pelo regime de Castro, e a de Ibrahim Ferrer, a inconfundível voz do Buena Vista Social Club; a Quinta de los Molinos, a antiga residência dos capitães-generais espanhóis durante o período colonial, e a Chinatown, onde desde 1857 se foram instalando alguns dos milhares de cules chineses e que hoje praticamente serve de tampão com a Cidade Vieja – mas a verdade e que só tinha olhos para os automóveis conversíveis que nos precediam ou cruzavam connosco na faixa contrária. Tão pouco me saíam da cabeça as meias de rede pretas de renda bordada coladas às bem torneadas pernas de todas as jovens funcionárias do serviço de migração, encarregadas de escrutinar os ecrãs das máquinas de raios X no turno da noite da minha chegada. Nunca pensei que um controlo fronteiriço pudesse ser tão agradável! Tudo não terá passado de uma coincidência ou era parte de uma operação de charme junto dos recém-chegados visitantes? A bandeirada, tanto na viagem de chegada como na de partida, à falta de meio de transporte alternativo, essa, foi digna de turista: 35 dólares para percorrer uns quinze quilómetros, se tanto. Cuba não é um destino barato. Sobretudo se nos limitarmos a frequentar os locais propositadamente concebidos para estrangeiros e aos quais só há muito pouco tempo os cubanos puderam ter acesso. O wi-fi, apesar de disponível em muitos dos alojamentos, raramente está operacional e nem as raspadinhas com os códigos pré-pagos garantem uma navegação tranquila. É vê-las, as resmas de turistas (Cuba está agora muito “in”), no átrio do Hotel Deauville a tentarem debelar as falhas do sistema, que ora está activo, ora adormece sem hora marcada para acordar.

Mas voltemos ao El Malecon, em cujas redondezas fico alojado, numa casa particular da calle San Lázaro, paralela à famosa marginal. Falo de uma zona com os prédios em avançado estado de degradação, o resultado do imoral boicote imposto pelo tio Sam ao longo de décadas e que impediria o acesso do comum cidadão a coisas tão básicas como a tinta, garantia última para a boa conservação das fachadas e interiores dos edifícios. Se a isto acrescentarmos as agruras climáticas da época das tempestades tropicais, quando ondas tsunamicas de vários metros galgam a El Malecon e tudo alagam, outra coisa não seria de esperar. Porém, e apesar de ir preparado, confesso que fico chocado. A meio caminho entre o esburacado e o esventrado e com o aspecto de uma derrocada eminente, os prédios parecem ter sido bombardeados. Lembram os congéneres, quero dizer, os menos fustigados, da Faixa de Gaza. Na América Latina, algo de parecido, só mesmo a baixa da cidade panamiana de Colón, mas aí, como diz o brasileiro, o bicho pega. E de que maneira. Espreita o perigo em cada esquina e o estranho com quem nos cruzamos pode ser um meliante em potência. Em Havana, pelo contrário, malgrado a ténue iluminação pública e os agrupamentos de gente nas soleiras de casa, as poças de água e o cheiro a urina, jamais nos sentimos inseguros. «O turista é olhado como um bem precioso», recordo as ponderadas palavras do señor Fuentes. Cuba, e quem diz Cuba diz os seus habitantes, precisam deles como de pão para a boca.

Famílias inteiras que alugam as divisões das suas casas recorrendo aos airbnbs e aos booking.coms são muitas e essa, até ver, é a forma mais evidente de obter algum dinheiro dos turistas. A senhora M (chamemos-lhe a mãe do Mykel) aguarda-me numa pequena sala em frente ao televisor. Conduz-me ao único quarto desocupado dos três que normalmente têm disponíveis, passando por um espaço ainda em obras que a seu tempo irá desempenhar a mesma função. Imaculadamente limpo e com casa de banho privativa, àquela hora da noite, é tudo o que necessito. Espera-me na manhã seguinte um bem guarnecido pequeno-almoço a três dólares, outra forma do habanero arrecadar divisas. Oportunidade para conhecer o marido da mãe do Mykel, um senhor alto e bem disposto, com um aparente excelente estado físico, apesar do rum que diariamente ingere. «Eu falo Português», diz ele. Nem é preciso perguntar-lhe onde aprendeu. Tenho à minha frente um dos milhares de cubanos que intervieram na guerra civil em Angola, e por lá foram ficando. «Estive apenas no sul, na região de Huíla, a combater os homens de Jonas Savimbi», esclarece enquanto abocanha uma sandes com mortadela, pois como diz, e acertadamente, «hay que alimentarse bien».

Joaquim Magalhães de Castro

Em Havana (Cuba)

 

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