Missão de «reconciliação e cura»
O Papa Francisco encerra hoje, no Círculo Polar Árctico, uma visita de seis dias ao Canadá em que assumiu um dos actos de maior humildade do seu pontificado: pediu desculpa por práticas promovidas pela Igreja Católica nas escolas e colégios do Canadá que contribuíram para aniquilar, durante quase dois séculos, a cultura dos povos indígenas. À chegada ao País, no fim-de-semana passado, o Sumo Pontífice pediu à comunidade indígena para que a relação com o Catolicismo fosse reatada, mas sem que o passado seja esquecido. O apelo foi reiterado na quarta-feira perante as autoridades civis, o primeiro-ministro Justin Trudeau e a governadora-geral Mary Simon.
O Papa Francisco esteve na quarta-feira reunido, no Québec, com os principais líderes políticos do Canadá, numa paragem marcadamente diplomática em que o Santo Padre voltou a abordar o principal propósito da sua visita de seis dias ao País.
Francisco embarcou numa viagem de «cura e reconciliação» que visa pedir desculpas pelo papel da Igreja na administração de escolas e colégios internos em que os povos nativos eram submetidos a práticas pouco convencionais.
No quarto dia da viagem, o Sumo Pontífice, que ao longo de toda a viagem se tem movido com a ajuda de uma cadeira de rodas, foi recebido na pista do Aeroporto Internacional Jean Lesage por representantes indígenas e líderes políticos.
O Papa esteve depois reunido na Citadelle, fortaleza que fica situada nas margens do rio São Lourenço, com o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau. A Citadelle é uma das residências oficiais da governadora-geral do Canadá, Mary Simon, que representa a Rainha Isabel II no País.
Francisco encontrou-se primeiro com Simon, a primeira pessoa indígena a servir como governadora-geral, e depois com Justin Trudeau, o qual fez da reconciliação com os povos indígenas do Canadá uma das suas prioridades políticas. Este último falou em privado com o Papa.
A Citadelle é a maior fortaleza britânica construída na América do Norte, com vista para um parque chamado “Plains of Abraham”, onde o líder da Igreja Católica discursou mais tarde perante Trudeau, Simon e alguns dos principais dignitários do País. Na ocasião, abordou «a injustiça radical» em termos de distribuição de riqueza que permeia um dos países mais ricos do mundo. «É escandaloso que o bem-estar gerado pelo desenvolvimento económico não beneficie todos os sectores da sociedade», disse Jorge Bergoglio, lamentando que muitas pessoas em situação de carência económica tenham que recorrer a igrejas e a bancos alimentares para garantir a sobrevivência. «E é na verdade muito triste que seja precisamente entre os povos nativos que encontramos, frequentemente, muitos indícios de pobreza, a par de outros indicadores negativos, tal como uma baixa percentagem de escolarização ou dificuldades agravadas no acesso ao sistema de saúde ou à aquisição de casa própria», acrescentou.
Os indígenas, que representam cerca de cinco por cento da população do Canadá, apresentam níveis mais altos de pobreza e uma expectativa de vida mais baixa do que os outros canadianos. Os nativos são ainda vítimas de crimes violentos com mais frequência e estão mais propensos a sofrer de dependência e a serem encarcerados.
Nos discursos que proferiram perante o Papa, tanto o primeiro-ministro canadiano, como a governadora-geral, evocaram as tragédias de que foram palco dezenas de estabelecimentos de ensino do País, o último dos quais fechou quase duas décadas antes de Francisco se ter tornado Papa. «Como pai, não consigo imaginar que os meus filhos me possam ser retirados. Quando os meus filhos necessitarem de chorar, posso consolá-los. Quando estão felizes, posso partilhar com eles esse sentimento de alegria», realçou Trudeau. «Mas nas escolas e nos colégios internos, as crianças estavam sozinhas e isoladas, presas na sua língua, na sua cultura e na sua identidade», fez questão de salientar o chefe do Executivo canadiano.
«Com esta visita, Sua Santidade está a sinalizar ao mundo que tanto vós, como a Igreja Católica, estão disponíveis para se juntar a nós neste caminho de reconciliação, cura, esperança e renovação», defendeu, por sua vez, a governadora-geral. «Mas estas pessoas, estes sobreviventes, eles desafiam toda e qualquer tentativa de definição. Eles são pais que defenderam os seus filhos quando mais ninguém o faria. São defensores que lutaram – e ainda lutam – pelas suas línguas e culturas para que possam prosperar nas próximas gerações», acentuou ainda.
Por sua vez, Francisco assegurou que a Igreja está pronta para «admitir as suas falhas» e garantiu que está disponível para trabalhar com as autoridades civis do Canadá a fim de «promover os direitos legítimos das populações nativas e favorecer processos de cura e reconciliação» entre canadianos indígenas e não indígenas.
Na segunda-feira, o Papa deslocou-se à pequena cidade Maskwacis, local onde estavam localizadas duas antigas escolas e emitiu um pedido de desculpas histórico em que denominou o papel que a Igreja desempenhou na assimilação cultural forçada das populações nativas como um «mal deplorável» e um «erro desastroso».
Na terça-feira, Francisco reiterou que a Igreja Católica deve aceitar institucionalmente a culpa pelos danos causados aos indígenas canadianos em dezenas de escolas tuteladas por instituições religiosas em vários pontos do Canadá.
Depois do encontro com Justin Trudeau e com Mary Simon, o sucessor de Pedro visitou o Santuário de Sainte-Anne-de-Beaupré, o mais antigo local de peregrinação católica da América do Norte e esteve reunido com o arcebispo do Québec, D. Gérald Cyprien Lacroix, num encontro que se materializou na Catedral de Notre-Dame do Québec.
O Papa Francisco regressa hoje ao Vaticano. No caminho de volta a Roma, a comitiva papal deverá parar por algumas horas em Iqaluit, no Ártico canadiano, local onde o Santo Padre deverá abordar a ameaça que as alterações climáticas representam para as comunidades indígenas.
Marco Carvalho