FRATELLI TUTTI: NOVA ENCÍCLICA APRESENTA FRATERNIDADE E RESPEITO PELOS DIREITOS HUMANOS COMO ALTERNATIVA À “ILUSÃO GLOBAL” DE DESENVOLVIMENTO
O Papa Francisco publicou, no último Domingo, a sua nova encíclica Fratelli Tutti(“Todos Irmãos”, em Português), traçando um cenário de “sombras” para denunciar o que qualifica como “globalismo” do mercado de capitais, que responsabiliza pelo aumento de desigualdades e injustiças sociais.
“O avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes económicos transnacionais”, escreve o Papa Francisco, num texto dedicado à “fraternidade e amizade social”.
O documento, primeiro do género em cinco anos, apela a uma “globalização dos direitos humanos mais essenciais” e aponta, como exemplos, a necessidade de erradicar a fome ou combater o tráfico de pessoas e “outras formas actuais de escravatura”, que apresenta como “vergonha para a humanidade”.
Falando num mundo sem rumo, o Papa propõe a redescoberta de uma “dimensão universal capaz de ultrapassar todos os preconceitos, todas as barreiras históricas ou culturais, todos os interesses mesquinhos”.
“Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio”, explica.
Francisco alerta para a tenção de “ignorar a existência e os direitos”, defendendo na sua encíclica a “amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos”.
Neste contexto, a encíclica Fratelli Tuttiapela que os vários projectos económicos, políticos, sociais e religiosos tenham em mente a “inclusão ou exclusão da pessoa que sofre” como elemento de avaliação.
“É necessário fazer crescer não só uma espiritualidade da fraternidade, mas também e ao mesmo tempo uma organização mundial mais eficiente para ajudar a resolver os problemas prementes dos abandonados que sofrem e morrem nos países pobres”, observa.
O documento cita em várias ocasiões a inédita declaração sobre a fraternidade humana que foi assinada em Abu Dhabi (2019) pelo Papa e pelo imã de Al-Azhar, a mais prestigiada instituição do Islão sunita.
Criação de fundo contra a fome
Também na encíclica agora apresentada ao mundo, o Papa sugere a criação de um fundo mundial contra a fome, que seria financiado pelas actuais despesas militares.
“Com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo mundial, para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres”, refere.
Francisco propõe um ideal de não-violência, particularmente em relação à guerra e à pena de morte, considerando que estas “nada mais fazem que acrescentar novos factores de destruição no tecido da sociedade nacional e mundial”.
O documento recorda que o Catecismo da Igreja Católica fala da possibilidade duma “legítima defesa por meio da força militar”, mas nota que tem havido uma “interpretação demasiado larga deste possível direito”.
“Conferiu-se à guerra um poder destrutivo incontrolável, que atinge muitos civis inocentes”, sublinha o Pontífice. “Às vezes deixa-me triste o facto de, apesar de estar dotada de tais motivações, a Igreja ter demorado tanto tempo a condenar energicamente a escravatura e várias formas de violência. Hoje, com o desenvolvimento da espiritualidade e da teologia, não temos desculpas”, escreve.
Quanto à pena de morte, a nova encíclica esclarece que “a vingança não resolve nada” e que as decisões judiciais devem procurar “evitar novos crimes e preservar o bem comum”.
“Hoje, afirmamos com clareza que ‘a pena de morte é inadmissível’ e a Igreja compromete-se decididamente a propor que seja abolida em todo o mundo”, assume, condenando em particular “as chamadas execuções extrajudiciais ou extralegais”.
Em 2018, o Papa Francisco ordenou a alteração do número do Catecismo da Igreja Católica relativo à pena de morte, cuja nova redacção sublinha a rejeição total desta prática.
A Fratelli Tuttisaúda os 75 anos de existência das Nações Unidas e a experiência dos primeiros vinte anos deste milénio para sublinhar que “a plena aplicação das normas internacionais é realmente eficaz e que a sua inobservância é nociva”.
Francisco destaca que a reconciliação exige memória e que há acontecimentos – como o Holocausto ou os bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui – que não se podem esquecer.
Contra o populismo, racismo e discurso de ódio
A Fratelli Tutticritica ainda o ressurgimento de populismos, do racismo e de discursos de ódio, muitas vezes propagados pelas plataformas digitais e redes sociais.
“A história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos”, alerta o Santo Padre, no texto divulgado pelo Vaticano.
“Para se tornar possível o desenvolvimento duma comunidade mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a amizade social, é necessária a política melhor, a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum”, escreve.
“É caridade se alguém ajuda outra pessoa fornecendo-lhe comida, mas o político cria-lhe um emprego, exercendo uma forma sublime de caridade que enobrece a sua ação política”, exemplifica Francisco.
O documento convida a distinguir populismo de popular, realçando que “existem líderes populares, capazes de interpretar o sentir dum povo, a sua dinâmica cultural e as grandes tendências duma sociedade”.
O Papa aponta o dedo a “movimentos digitais de ódio e destruição”, mostrando a sua preocupação com o crescimento de “formas insólitas de agressividade, com insultos, impropérios, difamação, afrontas verbais até destroçar a figura do outro”.
A encíclica liga estes discursos de ódio a “regimes políticos populistas” e a “abordagens económico-liberais”, segundo as quais seria necessário “evitar a todo o custo a chegada de pessoas migrantes”.
A este respeito, o Papa Francisco acentua que o racismo é um “vírus que muda facilmente” e “está sempre à espreita”, em “formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos”.
A encíclica é o grau máximo das cartas que um Papa escreve e a expressão “fratelli tutti” (todos irmãos) remete para os escritos de São Francisco de Assis, o religioso que inspirou o pontífice argentino na escolha do seu nome. Foi assinada, no passado sábado, em Assis, junto ao túmulo de São Francisco – e não “junto de São Pedro”, no Vaticano, como é tradição –, sendo dirigida aos católicos e “todas as pessoas de boa vontade”.
O documento tem oito capítulos, com 287 parágrafos, duas orações conclusivas e 288 notas.
As duas anteriores encíclicas do actual pontificado foram a “Lumen Fidei” (A luz da Fé), de 2013, que recolhe reflexões de Bento XVI, Papa emérito; e a “Laudato Si”, de 2015, sobre a ecologia integral.
In ECCLESIA – Textos editados