Este ano dedicado à Família é uma benção de Deus
O Ano Família Amoris Laetitia (a “Alegria do Amor”), dedicado à Família e aos problemas com que esta instituição se depara actualmente, arranca a 19 de Março, dia em que se celebra o quinto aniversário da exortação apostólica feita pelo Papa Francisco sobre este tema. Para o padre José Carlos Nunes, a iniciativa da Santa Sé em dedicar um ano à celebração da Família é um dom e uma bênção, dadas as dificuldades que se colocam aos agregados familiares. A pandemia de Covid-19 trouxe desafios como a pobreza, a instabilidade emocional e a incerteza em relação ao futuro, sendo que a juntar a estes há problemas que ganham contornos estruturais: o abandono a que são votados os idosos, o empobrecimento espiritual e o impacto das novas tecnologias são alguns deles. O director da edição portuguesa da revista Família Cristãem entrevista a’O CLARIM.
O CLARIM– Como vê a decisão do Papa Francisco em convidar a Igreja a dedicar, durante um ano, uma atenção particular à família e aos problemas da família?
PADRE JOSÉ CARLOS NUNES– Vejo esta decisão como um grande dom para a Igreja e para as famílias. A exortação apostólica Amoris laetitia, publicada há cinco anos, fruto de dois sínodos dos bispos na Igreja, veio relembrar o enorme património que são as famílias e, ao mesmo tempo, olhar com realismo para as dificuldades e os problemas que as famílias hoje vivem. Por isso, este Ano Família Amoris Laetitia é uma benção de Deus e ao mesmo tempo traz um duplo convite: que a Igreja continue a acompanhar as famílias integrando-as cada vez mais na pastoral e que as famílias continuem a cultivar, viver e transmitir a missão que receberam.
CL– Quais diria que são os principais problemas com que as famílias contemporâneas, nomeadamente em Portugal, se deparam?
P.J.C.N.– Neste momento trágico da pandemia os problemas mais imediatos estão ligados ao desemprego, pobreza, depressão, instabilidade emocional, incerteza em relação ao futuro. Numa perspectiva mais alargada, as vidas são cada vez mais complexas e individualistas, há falta de referências conjugais e familiares, empobrecimento espiritual, falta de consciência crítica sobre os não-valores (uma visão de família distorcida, que assenta apenas nos sentimentos e paixões e desresponsabiliza de qualquer empenho e sacrifício), veiculados pelos media e absorvidos acriticamente, uma mentalidade contra o valor da vida cada vez mais difusa, o declínio demográfico, a ideologia de género, a eutanásia, a toxicodependência e outras dependências.
CL– A Família, como elemento base da sociedade, recebe dos Governos e da própria sociedade civil a atenção que lhe é devida?
P.J.C.N.– Acho que a família dá mais aos Governos e à sociedade civil do que recebe. Basta reparar que os impostos são cada vez mais elevados, os salários não acompanham o aumento do custo de vida, os sistemas de saúde e de educação nacional tendem a deteriorar-se, o estilo de vida “imposto” leva a um maior endividamento, as reformas são cada vez mais baixas – e não se sabe se as haverá para todos no futuro – e os apoios à natalidade, à educação e ao cuidado dos idosos são cada vez menores.
CL– Um dos desafios que se colocam às famílias é o de educar e de preparar as novas gerações, mas até esta perspectiva sofreu mudanças muito rápidas nos últimos anos devido, por exemplo, ao impacto das novas tecnologias. De que forma é que este aspecto confronta as famílias com responsabilidades acrescidas?
P.J.C.N.– Recentemente um dos meus editoriais era precisamente sobre os desafios que as tecnologias colocam à família e repito-o também aqui: os pais têm uma função indispensável na mediação entre os filhos e a tecnologia. É muito útil não só alertá-los para os riscos da Internet, mas também estar com eles quando navegam, trocam mensagens nas redes sociais, e falar com eles sobre o que vêem na “net” ou que tipo de aplicativos usam. Este acompanhamento deve construir-se com base na confiança e na segurança recíproca. Mas também é importante criar regras claras, como uma espécie de contrato com os filhos, para o uso destes dispositivos electrónicos tanto a nível do tempo, como dos lugares e dos conteúdos. Porém, os pais não podem ser apenas os controladores do uso que os filhos fazem dos ecrãs e afins, têm que ser os primeiros a dar o exemplo no autocontrolo do uso destas tecnologias.
CL– Outro dilema é o do tratamento que é dado com cada vez mais frequência aos idosos, vistos muitas vezes – sobretudo no Ocidente – como elementos descartáveis, condenados a terminar a vida em lares. Numa sociedade obcecada pelo dinheiro, é possível uma abordagem alternativa?
P.J.C.N.– Esse é um problema muito sério, e grave, que revela o quanto (enquanto mentalidade) nos estamos a afastar do respeito, valorização e dignificação da vida como um dom de Deus. A política dos cuidadores informais, não só para os idosos mas também para os membros da família incapacitados ou com limitações, é uma boa resposta e alternativa aos lares e à institucionalização de pessoas. Mas os apoios do Estado têm que ser maiores, bem geridos e fiscalizados para tornarem atractiva esta política familiar. Por outro lado – e o Papa Francisco tem falado muito disso – a relação entre avós e netos é de uma riqueza incalculável na família e deve ser valorizada. A nível humano, o idoso é o garante da memória junto das novas gerações, é a chave de leitura dos acontecimentos passados e da história futura. Economicamente, os idosos são uma grande ajuda para os filhos e netos, e um potencial financeiro no mercado do consumo ligado aos produtos e às actividades culturais e de lazer. Na religiosidade e na afectividade, os idosos são os garantes da transmissão dos valores da fé que não se podem perder e que são determinantes para a construção de uma sociedade mais justa e humana.
CL– Que papel pode ou deve ter a Igreja no fomento de laços conjugais mais fortes? Como é que esta missão pode ser conduzida?
P.J.C.N.– A Amoris laetitia fala disso de uma forma muito concreta quando pede que se fortaleça a pastoral da preparação para o matrimónio com novos itinerários catecumenais, não só antes do casamento mas também nos primeiros anos a seguir (cfr. AL n.os205-222). Quando pede que o acompanhamento dos esposos numa perspectiva espiritual os leve a tomarem consciência do dom e da graça do sacramento do matrimónio que receberam, dizendo mesmo que este é um caminho de santificação, onde se experimenta a riqueza e a força que vem da luz pascal: “Se a família consegue concentrar-se em Cristo, Ele unifica e ilumina toda a vida familiar. Os sofrimentos e os problemas são vividos em comunhão com a Cruz do Senhor e, abraçados a Ele, pode-se suportar os piores momentos” (AL nº 317).
CL– Face a problemáticas como o divórcio ou o aumento das famílias monoparentais, que postura deve adoptar a Igreja?
P.J.C.N. – O Papa Francisco escreve na Amoris laetitia que “a Igreja deve acompanhar, com atenção e solicitude, os seus filhos mais frágeis, marcados pelo amor ferido e extraviado, dando-lhes de novo confiança e esperança, como a luz do farol dum porto ou duma tocha acesa” (nº 291). E a novidade está no novo caminho pastoral indicado como caridade fraterna para acompanhar, discernir e integrar “em toda e qualquer circunstância, perante quem tenha dificuldade em viver plenamente a lei de Deus, deve ressoar o convite a percorrer a via caritatis” (nº 306). A Igreja consciente da gradualidade do caminho humano acompanha “com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia, dando lugar à misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível” (nº 308).
Marco Carvalho