Testemunho do Cardeal Costa Nunes
Na sua obra “Entre chineses e malaios”, o cardeal D. José da Costa Nunes, bispo de Macau, responsável pelas missões de Malaca, Singapura e Timor, nas primeiras décadas do século XX, dá-nos prova da vitalidade dessas comunidades, sobretudo as de Seremban e Kuala Lumpur, para onde viajou na companhia de «um português de Malaca chamado Lopes». Ali o esperavam 200 luso-descendentes, entre os quais funcionários do Governo inglês, médicos, advogados, professores, negociantes, proprietários, empregados bancários e de companhias comerciais, «muitas senhores e homens», enfim, toda uma população eurasiana exprimindo-se em papiá kristang e gloriando-se dos seus apelidos e da sua ascendência lusitana.
Talvez devido a essa experiência no terreno, o prelado açoriano insurgiu-se contra a posição, nesta matéria, de uma das mais importantes figuras da intelectualidade portuguesa do final do século XIX, o historiador, político e cientista social Joaquim Pedro de Oliveira Martins. Costa Nunes escreve o seguinte: «Quando os escritores de qualquer país procuram reivindicar glórias nacionais, Oliveira Martins parece sentir um prazer cruel negando-as, como acontece, por exemplo, na questão da prioridade do descobrimento da Austrália atribuído a Manuel Godinho de Erédia, natural de Malaca».
Assumindo uma toada derrotista, sofrendo da neurastenia que afectou os homens da sua época, Oliveira Martins atribuía a posse de Macau a «um bando de piratas portugueses», e, em sua opinião, Malaca não passava de «um convento e um quartel onde os frades e os soldados mercadejavam», considerando miseráveis as populações mestiças da cidade, classificando-as de «degeneradas, simiescas e abjectas». Eis alguns dos seus mimos: «Sobre todos se levanta o português, com a sua excelência, templo ou fortaleza, que devia ser de civilização ou extermínio, e que por fim, lástima é dizê-lo, foi apenas a nau que nos levou, aos portugueses de Malaca, a descermos à condição de degenerados, poluindo o nosso sangue ariano, esquecendo as nossas tradições europeias. Já disse com melancolia que ainda hoje há “portugueses” em Malaca, mas que esses portugueses são como os orangbemas. Em contacto com a caducidade venenosa do Extremo Oriente, intoxicámo-nos».
Iria mais longe o reputado escritor, assumido «vencido da vida», ao perfilhar as apreciações de um antropólogo, um tal Dr. Yvan, que teria analisado a compleição física dos cristãos portugueses de Malaca, afirmando que estes «são fisicamente horrendos e moralmente abjectos, que têm feições bestiais, que são uns degenerados morais, que são inferiores aos malaios e que já se lhes apagou da memória a tradição, essa saudade das raças decaídas». Enfim, um pensamento proto fascista muito na linha do filósofo francês Arthur de Gobineau, autor do “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas” (1855), e inventor de um dos grandes mitos do racismo contemporâneo, o mito ariano, sendo dele a célebre frase «não creio que viemos dos macacos mas creio que vamos nessa direcção».
Recorde-se que foi em homens como Gobineau, e mais tarde no inglês Houston Stweart Chamberlain, que Adolf Hitler buscou inspiração para por em prática a sua tristemente célebre “solução final”.
Tal como Gobineau, Oliveira Martins era declaradamente racista, pois defendia a tese de que os povos formados a partir do negro e de índio eram incapazes para o tão desejado progresso. Parece óbvio, que o insigne historiador nunca pôs os pés no Extremo Oriente, se alguma vez chegou a sair do rectângulo ibérico, que tanto admirava, pois era um convicto iberista.
Persistentes, cônscios das suas tradições centenárias, os habitantes do bairro, os tais orangbemas de que falava Oliveira Martins, tinham sobrevivido a todas essas teses e continuavam a celebrar o Natal, o Entrudo, a Páscoa e, sobretudo, a Festa de São Pedro, padroeiro dos pescadores, em finais de Junho, incluída no calendário oficial dos Serviços de Turismo da Malásia. A mais concorrida festividade do País, o San Pedro, como lhe chamam, é excelente pretexto para reencontros entre residentes e seus familiares de Singapura, Kuala Lumpur e demais províncias malaias.
Estávamos na véspera desse evento. O largo do bairro enchera-se com barracas de comes e bebes, tômbolas e feirantes chineses – estes últimos alheios ao espírito da festa, mas que a tolerância dos locais admitia. Ao longo da tarde suceder-se-iam jogos tradicionais para crianças e mulheres, competições de pesca à rede entre os homens do mar, o jogo do pau, a manilha e a malha e, à noite, entrariam em acção os dois ranchos do bairro, o Rancho Folclórico de San Pedro, liderado por Joe Lazaroo, e o Tropa di Malaca. Tempos houve em que existiam vários destes grupos, assim como equipas de futebol, entretanto desaparecidas.
No palco, além de se interpretarem cantigas como o Malhão, a Tia Anica ou o Vinho Verde, devidamente ilustradas por bailadores e bailadoras trajando à minhota, que batiam o pé ao som do violino e do acordeão e ao compasso do tambor de caixilho, houve espaço ainda para às bandas de rock locais e as coreografias de adolescentes dando corpo aos êxitos musicais do momento, culminando a festa com o branyo – bailar típico dos pescadores de Malaca – que reuniu novos e velhos numa animada “pesta” que se prolongaria até de madrugada.
O momento alto desta festividade é, contudo, a missa de Domingo seguida do préstito com o andor do santo e a bênção dos barcos engalanados e de cara lavada que, varados, aguardam à beira mar. A decoração dessas embarcações dá azo a concursos muito disputados, e a cruz, a imagem de São Pedro e os versos bíblicos escritos em Português e em Inglês, lado a lado com figuras de peixes, pescadores, sereias e utensílios de pesca são os motivos decorativos mais usuais. Vi, no topo de alguns mastros, esvoaçar a bandeira das quinas, prova de que, apesar dos constrangimentos, os kristang continuavam a identificar-se com os seus antepassados; insistiam em olhar para Portugal como a sua verdadeira pátria.
Joaquim Magalhães de Castro