Os 50 anos da Revolução Cultural

Hábitos que custam a desaparecer.

Quando se fala em Revolução Cultural de imediato nos referenciam o panfleto incendiário posto a circular na China em Maio de 1966, e, em Agosto do mesmo ano, a intitulada lei das “Decisões acerca da Grande Revolução Cultural Proletária” que conduziria a uma campanha de destruição que marcou para sempre o tino e o destino de milhões de chineses. Poderíamos concluir que tudo isso passou. Mas não, resquícios do período mais sombrio da história da China perduraram ao longo de décadas.

Aquando a implementação da política reformista de Deng Xiaoping, em nome do “sacrossanto progresso” foram sacrificados centos de edifícios públicos construídos nos anos 50 pelos soviéticos, pintados com cores garridas e decorados a gesso. Em nome da “higiene urbana”, foram arrasados muitos dos mercados tradicionais, palco de práticas ancestrais na Rota da Seda. O mercado da sedutora cidade de Kashgar, por exemplo, tinha mais de dois mil anos.

Além do mercado, centenas de belos e coloridos edifícios neoclássicos, onde funcionavam hotéis, teatros, escolas e outras instituições públicas, foram literalmente arrasados para dar lugar a prédios de construção duvidosa e avenidas largas que desvirtuaram o traçado arquitectónico tradicional das cidades. Resistiram os bairros uigures, mas não em todas as cidades.

Ainda apenas há década resquícios dessa “Revolução Cultural revisitada” voltaram a dar notícias, e uma vez mais visaram a medieva Kashgar. A decisão do Governo Central de demolir o centro histórico da capital cultural do uigures – “o mais bem preservado exemplo de uma cidade islâmica da Ásia Central”, nas palavras do arquitecto e historiador George Michell, citado pelo The New York Times – gerou uma onda de protestos com repercussões internacionais.

Centenas de famílias foram de imediato deslocadas desse centro histórico, e, para evitar eventuais engulhos no processo, o canal televisivo regional transmitiu regularmente um apontamento de quinze minutos que nos mostrava radiantes bailarinos e músicos de um grupo folclórico uigur em plena actuação, enquanto, em voz off, se teciam loas aos benefícios da vida em blocos de apartamentos e largas avenidas. Chegaram a afirmar que nunca houvera “evento tão importante na cidade”.

A respeito desta polémica, um velho amigo uigur que regularmente visitava Macau, pois residia na vizinha cidade de Cantão, dissera‐me o seguinte: «Há vinte anos, usaram uma alegada ausência de higiene como motivo para a destruição de um mercado ancestral situado no coração de Kashgar; hoje, justificam uma barbárie ainda maior, pois toda a cidade islâmica está em risco, com a ameaça da possível ocorrência de um sismo. Francamente! Podiam usar um argumento mais válido, já que este é um insulto à nossa inteligência. Se a cidade aguentou, incólume, dois mil anos, por que razão não há-de aguentar outros tantos?».

Argumentavam as autoridades que nenhum Governo digno do seu bom nome se esquivaria «a proteger os seus cidadãos de uma ameaça natural tão terrível como um sismo», sugerindo ainda que o povo uigur deveria estar eternamente grato aos “han” por estes lhe terem proporcionado os benefícios da civilização moderna. «Esquecem‐se de dizer que a maioria dos edifícios que, em 2008, ruíram na província de Sichuan, sepultando milhares de pessoas, eram de construção recente, alegadamente novos», ironizava, a propósito, Amin.

O plano de realojamento da população foi gigantesco e previu a mudança de 65 mil famílias, cerca de 220 mil pessoas, para zonas residenciais construídas de raiz. A oferta de casas novas era tentadora e foram muitos os uigures que apoiaram a operação.

Tradicionalmente, a Kashgar das ruelas apertadas e labirínticas ia sendo remodelada pelos próprios habitantes, à medida que conseguiam fundos para o fazer. De um dia para o outro, foram forçados a abandoná‐la, recebendo até 200 yuans (23 euros) por metro quadrado, se o fizessem dentro de um prazo definido, caso contrário o desalojamento não dava direito a qualquer tipo de indemnização.

Uma pequeníssima área da cidade foi preservada, tendo em vista futuras visitas turísticas. Aconteceu exactamente o mesmo com os “hutongs”, os bairros tradicionais de Pequim, sacrificados em nome de uma moderna e asséptica anfitriã dos Jogos Olímpicos de 2008. Apenas um desses bairros sobreviveu, para turista ver.

Os trabalhos de demolição – nos quais foram gastos 440 milhões de yuans – ocorreram ao longo de três anos. Abrindo as hostilidades, uma reputada escola corânica foi o primeiro edifício a ser arrasado, apesar de estar classificada como monumento histórico. Datava do século XVI e nela terá estudado o poeta e escritor Mahumud Al Kashgari, referência maior da intelectualidade uigur.

Muitos acreditaram que a principal razão desse plano era o de destruir os símbolos da cultura local – e Kashgar, importante centro de saber islâmico, era certamente um dos mais notáveis – alterando, ao mesmo tempo, o espaço organizacional de um povo visceralmente distinto do povo “han”, para além de prevenir, no futuro, possíveis focos de rebelião.

«Ainda cheguei a acreditar que o Governo não cometeria mais erros desses», dizia Amin, a propósito dessa tal “segunda Revolução Cultural”.

Curiosamente, quem chamou mais a atenção para o irremediável desaparecimento desse património único foram os próprios chineses “han”. O Beijing Cultural Heritage Protection Center foi o primeiro a lançar um pungente apelo para tentar salvar a cidade de Kashgar, considerando‐a bem mais relevante que os bairros tradicionais da capital ou até de Lhasa, a cidade santa do Tibete. A este respeito, Amin, pessimista, comentava: «Se eles próprios não conseguiram salvar o património da sua cidade, duvido que consigam fazê‐lo neste caso».

À semelhança dos muitos apaixonados por Kashgar, também este uigur achava estranho que uma cidade com tão grande importância histórica e arquitectónica não usufruísse já do estatuto de Património da Humanidade. Fazia todo o sentido, por isso, a pergunta que alguém começara a fazer circular na Internet: «Será que a imediata integração de Kashgar na lista do Património da Humanidade poderá impedir a sua destruição?». Também no ciberespaço circulou uma petição que seria enviada a Cai Wu, o ministro da Cultura da República Popular da China. Infelizmente, uma e outra, tentativas em vão.

Joaquim Magalhães de Castro

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