O Tempo
«Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu», revela-nos o livro do Eclesiastes 3,1, no Antigo Testamento. O tempo, esse mistério, essa necessidade imperativa, esse desejo, esse problema, esse sonho… o tempo, tão simples que é, mas afinal algo que nos guia e não nos larga. Será uma magnitude física, com a qual medimos a duração ou separação, organização de acontecimentos, que por isso mudam ou até podem perenizar-se, num sistema de observação e medida. Com o tempo podemos ordenar acontecimentos, factos, sucessos, em sequências, em conjuntos ou escalas, definindo assim um passado e um futuro, ou aquilo que não pertence a nenhum destes, o presente, feito de eventos em simultâneo, em sincronia, mas que acabam por criar a diacronia, a sequência, infinita…
Há o tempo do relógio, do calendário, com a sucessão de horas, minutos, segundos, ou tempo cronológico (do Grego “chronos”), da fusão medieval do pai de Zeus (Crono) e do Tempo (Chronos). É um tempo mecânico, diferente do tempo das emoções, das alegrias, das tristezas, do tempo de um preso na cadeia, do tempo do amor, do tempo de uma mãe que cuida do seu filho, das esperas, das angústias, do tempo ou que chega depressa ao fim ou do que nunca mais acaba. Do tempo especial, a que se chama de oportunidade ou ocasião. Um tempo, humano, que afinal não é todo igual, que varia de pessoa para pessoa, povo para povo, dentro da história até do próprio tempo. Há um tempo dos homens, histórico, dos relógios e clepsidras, que se escoa na vida quotidiana, na voracidade dos dias que se sucedem, da vida… e há o tempo de Deus, de salvação, o tempo sem tempo, da eternidade, afinal uma característica de Deus. Que é a substância do próprio Tempo, do seu devir.
Tempo é uma palavra do Latim medieval, “temps”, que significa “cortar”, “talhar”, uma característica, aliás, do tempo histórico, que se “corta”, divide, a nossa existência enfim, em horas, dias, anos… Os povos primitivos conceberam o tempo como uma realidade cíclica, sujeita ao “eterno retorno”, ao tempo primordial, reproduzido em ritos e celebrações destinados à sua recordação e vivência, pois neles estavam os valores decisivos do tempo humano da existência terrestre, das civilizações. Tudo o que está à posteriori desses tempos primordiais é o desenvolvimento ou as consequências, no espaço e no tempo, dessas origens, ou a sua corrupção e decadência. Esta noção de tempo destruidor, aniquilador, criou o medo do passar do tempo, que afinal desgasta e corrompe: por isso, é imperativo regressar aos tempos primordiais, puros e genuínos, aos quais se deverá criar fidelidade e observância, imitar. Perante esta cronocracia, ou cromofobia, melancólica, voraz, surge talvez a mais original das facetas do Cristianismo, o tempo novo, ou o tempo da esperança, o tempo de Deus, da Encarnação. O kairós de São João Paulo II, o “tempo especial”, fundamental, pois é nele que tem lugar a obra da criação e da salvação, referia aquele Papa. «É este o tempo favorável, é este o tempo da salvação», como clamara São Paulo (Cor 6,1-2).
O conceito judaico-cristão de tempo, forjado na Bíblia e sublimado pela liturgia, estabelece o conceito de tempo linear, com um começo, enquanto acto de criação de Deus, chegando até a definir um tempo final, escatológico. Mas Deus é, todavia, eterno, intemporal, o Criador, do tempo favorável, especial. Por isso cada tempo tem que ser aproveitado, vivido, para e por Ele, logo para os outros, na alteridade, não no egoísmo, aproveitando a oportunidade do tempo d’Ele: senão, não volta, porque o tempo não se repete. O tempo para Deus, para o fim dos tempos, o tempo do Eclesiastes (3,1-8, vale a pena ler), que não se pode perder.
O tempo definitivo de Deus surge pois no re ligare, na religião, e na sua dinâmica salvífica. O Cristianismo ancora-se mesmo nessa esperança do tempo definitivo, do eterno “hoje” da salvação. Mas o tempo tem, por isso, várias características, vivências: de tensão, quanto ao futuro; vigilância e atenção, para não se perder o tempo que Deus concede a cada um para viver a sua história, o seu tempo especial; a perseverança, estribado na crença nas promessas de Deus. O presente vive-se pois na esperança, enquanto abertura ao futuro, pois «Ele será tudo em todos (1 Cor 15,28)», mesmo vivendo na transitoriedade própria do tempo histórico.
A eternidade será afinal o fruto maduro do tempo da vida do cristão, de qualquer um. A liturgia não é afinal a antecipação dessa eternidade, que coloca cada um fora do tempo histórico mas dentro do tempo de Deus, o tempo especial que não é tempo, sem tempo. A Encarnação do Verbo, em Jesus, marca já o toque do eterno no tempo dos homens, como exalta São João, logo a abrir o seu Evangelho. O princípio, a eternidade de Deus, e o tempo histórico, dos homens («…veio habitar connosco») está por demais evidenciado em João, na descida do Filho de Deus ao mundo, do eterno que vem mostrar o caminho ao tempo finito, da caducidade. Mas o eterno que vem também, na criação, tocar numa obra boa (n 1,31) que Cristo sublimaria e o Novo Testamento confirmaria como o tempo da salvação, do futuro, já não do passado, numa nova história, epifânica, ou seja, plasmada pela intervenção de Deus.
Tempo, um tema infinito, difícil de materializar, de dominar, porque nos ultrapassa, nos domina. A religião, pela confiança intrínseca que gera no crente, com a esperança e a ideia de eternidade, o fruto maduro da existência terrena do homem no vale de lágrimas do mundo e do seu tempo histórico, assume-se pois como a forma de qualidade de tempo que o homem dispõe para mitigar a sua debilidade e pequenez, disfarçar imperfeições mas também alavancar a sua existência em algo mais do que apenas viver ou existir. A qualidade do tempo pertence e é transmitida e vivida apenas no domínio da fé, sobrepondo-se à quantidade do tempo. O homem moderno preocupa-se mais com esta escala, quantificável, tentando esticar cada vez mais a sua existência, mas perde qualidade de tempo. Esta, para se começar a procurar, é até fácil de começar a encontrar: basta abrir a Bíblia. «Os meus dias são como a sombra que declina, e eu vou secando como a erva. Tu porém, Senhor, permaneces para sempre (Sl 102,12-13; cf. Sl 90,4-12)».
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa