Exame de consciência, confissão e adoração sincera
Todos os anos o Santo Padre recebe os prelados que trabalham na Cúria Romana, e dirige-lhes os seus votos de Natal. No passado dia 22 de Dezembro, o Papa Francisco cumpriu a tradição. Mas o seu discurso não foi o habitual comunicado sobre o “Estado da Igreja”, e não foram poucos os observadores que aproveitaram para se congratular com as suas palavras e conectá-las às suas necessidades, de acordo com as suas próprias tendências.
Aqui deixamos alguns títulos publicados sobre o sucedido: “O Papa Francisco Cumprimenta a Cúria e Rasga-a em Tiras”; “O Papa Francisco Arrasa a Cúria Romana”; “Feliz Natal seus Hipócritas Sedentos de Poder”; “O Papa Francisco Desfere um Ataque Inflamado na Burocracia do Vaticano”; “Francisco dá Lenha (para) os Membros da Cúria Romana (se queimarem) Neste Natal”.
E, na realidade, ele disse, ou fez isso?
Deixem-me citar algumas passagens, que eu acredito serem essenciais para se poder compreender o que o Santo Padre disse. Depois de ter falado sobre o Nascimento do Senhor, o Santo Padre agradeceu a cada um dos presentes pelo seu empenho ao serviço da Santa Sé, da Igreja Católica, das Igrejas em particular e do Sucessor de Pedro.
Depois falou da Igreja como sendo um Corpo, e da Cúria como sendo “Um Corpo Dinâmico” em Cristo. E que esse Corpo necessita de ser alimentado e de se cuidar a si próprio. De facto, acrescentou o Santo Padre, «tal como a Igreja, a Cúria não pode viver sem ter uma relação vital, pessoal, autêntica e forte com Cristo. Um membro da Cúria que não se alimenta diariamente com comida fortificada tornar-se-á num burocrata (apenas um formalista, funcionalista, empregado). Uma raiz que seca e que lentamente morre e é deitada fora. A oração diária, a participação assídua nos Sacramentos, especialmente na Eucaristia e na Reconciliação, o contacto diário com o Mundo de Deus e a Espiritualidade representada pela caridade viva são alimentos para cada um de nós. Que fique claro a todos nós que sem Ele, não podemos fazer nada (João 15:8)».
Penso que este ponto é essencial para se entender a listagem das doenças que ele fez pouco depois.
O Papa Francisco continuou: «Consequentemente, a relação viva com Deus também alimenta e fortalece a comunhão com os outros, quer dizer, quanto mais profundamente ligados nós estivermos com Deus mais interligados estaremos entre nós, porque o Espírito de Deus une e o espírito do Mal divide».
Foi então que o Santo Padre mencionou a sua intenção: convidar todos a «um Verdadeiro Exame de Consciência», «para nos prepararmos para o Sacramento da Reconciliação», «nestes dias em que nos preparamos para a Confissão». Quase nenhum dos comentadores se referiu a estas palavras.
Numa entrevista dada em Dezembro ao La Nación (a primeira concedida a um jornal argentino), o Santo Padre disse que as pessoas entenderam mal quando pensaram que uma reforma na Cúria significava uma redistribuição de cargos no Vaticano. O Santo Padre disse: «A reforma espiritual é a minha maior preocupação, mudar os corações das pessoas». Nessa mesma entrevista, o Papa Francisco já tinha afirmado: «Estou a escrever o meu discurso de Natal para os membros da Cúria, e eu espero escrever dois discursos, um para os Prelados da Cúria e outro para todos os funcionários do Vaticano, com todos os nossos assistentes». Não foi surpresa que o Sumo Pontífice tenha dito o que disse no passado dia 22 de Dezembro.
Então, na realidade, o que foi que ele disse?
Ele enumerou uma lista de 15 doenças e tentações que são um perigo para todos os Cristãos, e para cada um e todos os membros da Cúria, Congregação, Paróquia, Movimento Eclesiástico, etc., e que podem atingir tanto a nível individual como comunitário. Apresentamos algumas passagem seleccionadas.
“1 – A doença de se sentir ‘imortal’, ‘imune’, ou de facto ‘indispensável’. Esta é a doença daqueles que se transformaram em patrões e se sentem superiores a todos os outros e com isso já não se encontram ao serviço de todos. Este facto muitas vezes decorre da patologia do poder, num narcisismo que olha apaixonadamente para a sua própria imagem e já não vê a imagem de Deus estampada na face dos outros, especialmente nos fracos e mais necessitados. O antídoto para esta epidemia é a Graça de nos revermos como pecadores e dizermos sinceramente do fundo do coração: «Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer» (Lucas 17:10)”.
“2 – A doença de ‘Marta-ismo’ (que se relaciona com Marta), do trabalho excessivo, nomeadamente aqueles que se mergulham no trabalho e inevitavelmente, descuram ‘a melhor parte’: estar sentado aos pés de Jesus (de acordo com Lucas 10:38-42). Foi por isso que Jesus disse aos seus Discípulos para «descansarem um pouco ( Marcos 6:31)», porque descurar o descanso necessário, conduz ao ‘stress’e agitação. O tempo de descanso, para quem cumpriu a sua tarefa, é necessário, um direito e deve ser cumprido com seriedade; despendendo algum tempo com a família, respeitando os feriados como oportunidades para ‘recarregar’ espiritual e fisicamente. Devemos aprender com o que ‘Eclesiástico’ nos ensina: «Há um tempo para tudo» (3:1-15)”.
“3 – As doenças da ‘petrificação’ mental e espiritual, nomeadamente naqueles que têm um coração de pedra e um ‘pescoço empertigado’ (Actos 7:51-60).
É perigoso perdermos a necessária sensibilidade humana que nos leva a chorar com os que choram, e alegrarmo-nos com os que se alegram! Esta é a doença dos que perdem o ‘sentimento de Jesus’ (Filipenses 2:5-11) porque, com o passar do tempo, os seus corações endurecem e tornam-se incapazes de amar incondicionalmente o seu Pai e os seus vizinhos (Mateus 22:34-40). De facto, ser-se Cristão significa ter os mesmos sentimentos que se encontravam em Jesus, sentimentos de humildade e auto entrega, de desapego e generosidade”.
“4 – A doença do planeamento e funcionalismo excessivos, quando o apóstolo planeia tudo minuciosamente e pensa que com um planeamento perfeito as coisas realmente progridem, e assim se transforma num contabilista ou homem de negócios. De facto é necessário preparar tudo bem, mas sem nunca cair na tentação de diminuir e governar a liberdade do Espírito Santo, que continuará sendo sempre maior, e mais generosa que qualquer planeamento humano (João 3:8)”.
“5 – A doença da má coordenação, quando os membros perderem a comunhão entre eles e o corpo perder a sua harmonia funcional e a sua temperança e se transformar numa orquestra que emite apenas sons, porque os seus membros já não colaboram uns com os outros e não vivem em espírito de comunhão e de equipa. Quando o pé diz ao braço ‘eu já não preciso de ti’, ou a mão diz à cabeça ‘quem comanda sou eu’ isso causará males e escândalos”.
“6 – Também existe a doença de Alzheimer Espiritual, nomeadamente o esquecimento da ‘história da Salvação’ pessoal de cada um com o Senhor, o ‘primeiro amor’ de cada um (Revelação 2:4). Vemo-la nos que se esqueceram do seu encontro com o Senhor, dos que dependem inteiramente do seu ‘presente’, ou das suas paixões, desejos e fixações, dos que constroem barreiras e hábitos à sua volta tornando-se cada vez mais escravos de ídolos que eles criaram com as suas próprias mãos”.
“7 – A doença da rivalidade e da vaidade, quando a aparência, a cor dos fatos e os símbolos de honra se tornam o objectivo primário da vida, esquecendo as palavras de S. Paulo: «Não façam nada fruto do egoísmo ou de preconceitos, mas humildemente considerem os outros mais do que a vós próprios. Que cada um de vós não cuide apenas dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros» (Filipenses2:1-4)”.
“8 – A doença da esquizofrenia existencial. É a doença dos que vivem uma vida dupla, fruto da hipocrisia típica dos medíocres e de um esvaziamento espiritual progressivo, preenchido por graus e títulos académicos. Uma doença que muitas vezes ataca os que, abandonando o serviço pastoral, se limitam aos trabalhos burocráticos, perdendo o contacto com a realidade, com pessoas reais, e assim construindo um mundo paralelo para eles próprios onde eles se desligam de tudo o que severamente ensinaram aos outros e começam a viver uma vida secreta, muitas vezes dissoluta. Para esta muito grave doença a Conversão é muito urgente e indispensável (Lucas 15:11-32)”.
“9 – A doença dos boatos, dos rumores, do diz-que-disse. Já falei várias vezes sobre esta doença, mas nunca é demais falar sobre ela. É uma doença grave que simplesmente começa com, possivelmente, uma conversa a dois, cujo teor se apodera de uma pessoa, transformando-a num ‘semeador de discórdia’ (tal como Satan), e muitas vezes num ‘assassino a sangue frio’ da reputação de colegas e irmãos. É uma doença de pessoas cobardes, que não tendo a coragem de falar directamente acusam pelas costas. S. Paulo avisou-nos: «Façam tudo sem resmungar ou questionar, e assim não sereis responsabilizados mas inocentes (Filipenses 2:14-18)». Irmãos acautelem-se contra o boato terrorista”.
“10 – A doença de endeusar os directores. É a doença dos que cortejam os seus superiores na esperança de receberem a sua benevolência. São vítimas de carreirismo e de oportunismo, honram pessoas e não Deus (Mateus 23:8-12). São pessoas que vivem o seu dever pensando unicamente no que dele possam conseguir e não no que devem fazer. Resultado: pessoas insatisfeitas guiadas apenas pelo seu egoísmo fatal (Galatianos 5:16-25). Esta doença também atinge os Superiores quando cortejam alguns dos seus colaboradores para assim conseguirem o seu apoio e submissão, lealdade e dependência psicológica, mas que resulta numa cumplicidade real”.
“11 – A doença da indiferença para com os outros, quando alguém pensa apenas em si próprio e perde a sinceridade e o calor humano no seu relacionamento. Quando os mais qualificados não disponibilizam os seus conhecimentos aos seus colegas menos qualificados. Quando alguém adquire conhecimentos sobre algo importante, guardando só para ele e não o partilha positivamente com os outros. Quando por inveja ou interesse alguém sinta prazer de ver outros em dificuldades e não os ajude a recuperarem e não os encoraje”.
“12 – A doença da cara fúnebre, nomeadamente em pessoas incivilizadas e irritadiças, que acreditam que para ser-se tomados a sério devem apresentar uma cara melancólica e austera e ameaçar os outros, especialmente os que considerem ‘inferiores’, tratando-os com rigidez, dureza e arrogância. Na realidade, muitas vezes uma dureza e pessimismo artificial são sintomas da sua própria insegurança. O apóstolo deve esforçar-se por ser uma pessoa cortês, serena, entusiasta e alegre que transmite alegria onde quer que esteja. Um coração pleno de Deus é um coração feliz que irradia e transmite alegria a todos os que o rodeiam; e isso é notado de imediato! Além disso não devemos perder esse espírito brincalhão, cheio de humor e mesmo auto-crítico, que nos transforma em pessoas afáveis mesmo em situações difíceis. O bem que uma boa dose de humor pode fazer! Far-nos-á melhor recitar muitas vezes a oração de S. Tomás More: «Rezo todos os dias, isso faz-me bem»”.
“13 – A doença da acumulação, quando o apóstolo tenta preencher todos os vazios existenciais do seu coração com a acumulação de bens materiais, não por necessidade mas apenas para se sentir seguro. Na realidade, não podemos levar nada de material connosco porque ‘o caixão não tem gavetas’ e todos os nossos tesouros terrenos – mesmo que tenham sido presentes – nunca serão capazes de preencher esse vazio. Na realidade ainda tornarão esse vazio mais profundo e difícil de suportar. A estas pessoas o senhor repete: «Aos que dizem, sou rico, sou próspero, e não preciso de nada, não sabendo quão miseráveis, lamentáveis, pobres, cegos e nus são, sejam zelosos e convertam-se (Revelações 3:17-19)». A acumulação apenas faz peso e reduz a velocidade da viagem inevitável!”
“14 – A doença dos círculos fechados, quando o facto de pertencermos a um pequeno grupo é mais importante do que pertencer ao Corpo e em certas situações ao próprio Cristo. Isto é mal que ataca de dentro e, conforme Cristo nos disse: «Todo o reino divido contra si próprio está destruído» (Lucas 11-17)”.
“15 – A última, a doença do proveito mundano, do exibicionismo, quando o apóstolo transforma os seus serviços em poder mundano, e esse poder em mercadoria para obter proveitos ou mais poder mundano. Esta é a doença das pessoas que procuram insaciavelmente multiplicar os seus poderes, e que para atingirem esses fins são capazes de caluniar, difamar e desacreditar os outros, mesmo publicamente nos jornais e revistas. Naturalmente apenas para se exibirem melhor e mostrarem-se mais capazes que os outros. Esta doença também faz mal ao corpo porque leva a que a pessoa justifique o uso de quaisquer meios, desde que com eles atinja os seus objectivos, muitas vezes em nome da justiça ou transparência”.
Talvez, se tivermos que oferecer um resumo destas doenças, possamos usar outra homilia do Papa Francisco, proferida a 14 de Abril de 2013, na igreja de S. Paulo de Fora Portas. «Nós temos que nos esvaziar dos pequenos ou grandes ídolos que carregamos e nos quais procuramos refúgio, nos quais muitas vezes baseamos a nossa segurança. São ídolos que às vezes mantemos bem escondidos. Eles podem ser a ambição, um pendor pelo sucesso, colocarmo-nos no centro do palco, a tendência de dominar os outros, proclamarmos ser os únicos senhores das nossas vidas, ou alguns pecados aos quais estamos ligados, e muitos outros. Esta tarde eu gostava de colocar uma pergunta que reverberasse no coração de cada um de vós, e eu gostava que vocês respondessem com honestidade: Terei considerado qual o ídolo que está escondido na minha vida que me impede de amar profundamente a Deus? Amar profundamente a Deus é livrarmo-nos dos nossos ídolos, mesmo os mais escondidos, e escolher o Senhor como o centro e como a auto-estrada das nossas vidas».
Que pergunta mais apropriada para colocarmos a nós próprios no momento em que nos ajoelhamos com os Reis Magos perante o Salvador do Mundo.
Pe. José Mario Mandía