Histórias do poder e da morte
Este tema não tem nada de original, nem sequer o título. Mas as grandes lições da vida têm de ser repetidas, a espaços regulares, para podermos ir assimilando as profundas verdades que encerram. E a relação inextricável entre o poder e a morte é tema tão importante de reflexão que o resultado desta pode mudar tudo.
Sou pois, na escrita desta crónica, “filósofo” e aprendiz de filosofia, ao mesmo tempo, porque só a mim mesmo ouso dar lições do que quer que seja.
O falecimento de personalidades famosas que, como a esposa de um antigo Presidente americano que, como casal, dominou, durante décadas, a vida política e social do seu país, justifica esta reflexão.
E sobretudo porque, tocados por um deus desconhecido para cumprirem um destino excepcional como clã, dispunham-se a providenciar generosamente várias gerações de talentos, à pátria americana, carente deles todos. Pelas piores razões, o milagre dinástico não prosseguiu. Pelas piores razão, repito, conhecendo agora o que veio a seguir. Do mal o menos, seria caso para dizer.
Celebrar a morte… ou a vida?
Pela televisão “toquei” a emoção, a dor e as lágrimas dos mais próximos – e o lado social, quase frívolo, dos rituais fúnebres, muito mais para entretenimento dos vivos do que para utilidade, mesmo sobrenatural, dos mortos.
E são as fotos de circunstância, e as vestimentas que os media observam (na duvidosa avaliação do “chic”, versão luto…), e quem falou o quê e com quem, quem riu ou chorou e porquê…
E depois as conversas dos sobreviventes do poder – e sobreviventes por mais uns tempos da própria morte. Porque, como dizia de modo algo teatral Bill Clinton, há tempos atrás, apontando para o caixão de Helmut Kohl à sua frente, no centro mesmo da grande sala do Parlamento Europeu em Estrasburgo – NÓS ACABAMOS TODOS ASSIM!
– É verdade, Bill, tu, nós, todos. É a democracia autêntica, mas… póstuma. Aquela onde a igualdade já não tem importância nenhuma!
São episódios destes, retirados directamente da vida real, que nos reconduzem sempre às verdades mais essenciais do homem, isto é, a vacuidade do poder, a transitoriedade da glória e a inescapável certeza da morte.
Em que medida a última, a morte, tempera as seduções de um e de outra – o poder e a glória – eis a grande questão, a que só cada um poderá responder, no seu foro íntimo.
Mas a vida, com seus atractivos, é uma grande sedutora. E a ilusão de eternidade é tomada facilmente como a própria eternidade.
Pois não é tão difícil, quando se é o centro de tudo, deixar de ouvir o toque suavíssimo do inexorável relógio do tempo? Como sabem bem as homenagens, a lisonja, os alimentos contínuos da vaidade!
O revoltante aqui é a rapidez com que os segundos se transformam em minutos, os minutos em horas, as horas em dias…
Trump, sabe-se, tem a gula enorme da lisonja permanente, do exacto tamanho do seu EU? Donald, não sofras de solidão! Não estás sozinho… ELES, os teus irmãos siameses, são legião…
O poder e a sua perda
Mas o que é ter poder? É ter a capacidade de, pela própria voz, se comandar o destino dos outros. Suscitando o medo em milhares, se a voz de comando alcança multidões. É suscitar o receio de poder tornar ainda mais vulneráveis as vidas pequeninas, feitas de sonhos pequenos ou grandes, mas que a voz de igual modo condiciona… a carreira, o emprego, o pão dos filhos, a bolsa de estudos, a viagem ao estrangeiro, a promoção…
E, de modo mais essencial e decisivo, a vida ou a morte. Nos minutos que antecederam os ataques aéreos americanos a Bagdade, nesses primeiríssimos momentos do que viria a ser a invasão americana do Iraque, para destronar Saddam Hussein e puni-lo assim pelas armas nucleares – que afinal não tinha!… – nesses momentos antecedendo a grande tragédia, eu pensei, de modo quase infantil: – E se isto não acontecesse? Quem vai morrer ainda não morreu… imerso que está na normalidade do quotidiano… Se isto não acontecesse?
MAS ACONTECEU. Destruiu-se um país. Abriu-se a caixa de Pandora dos extremismos mais mortíferos e odiosos. Milhares morreram, ficaram órfãos, ou incapacitados para sempre – e o cortejo de desgraças não pára aqui.
Como são vividos, pelo próprio “poderoso”, e depois pelos conselheiros e pelos prosélitos, os defeitos de avaliação e suas consequências, quando a decisão política se vem a revelar pura e simplesmente ERRADA?
Isto na pressuposição de que erros existem, pois ninguém se auto-recrimina. Ninguém ou pouquíssimos dizem “mea culpa” e batem com a mão no peito. E se o mérito da (má) decisão não é reconhecido e muito menos louvado, é por má fé dos adversários!
Deve haver por isso, da parte de quem erra, uma carapaça tal de resignação ou de indiferença, ambas filosóficas aliás e portanto “respeitáveis”(?). É isso que torna possível ao poder sobreviver com boa consciência?…
E repare-se como a própria pessoa, já sem poder efectivo se reveste, todavia, de uma certa aura de santidade cívica que funciona como muralha invisível contra os “comuns” que são todos os outros.
O poderoso já sem poder real está salvo, ou melhor, está safo! Atingiu o patamar dos intocáveis que só a História julgará…
Por isso, deixar o poder é continuar a ter poder. Junto de quem lhe atribui capacidade de influência, ainda socialmente útil, ou uma lucidez superior, não demonstrada aliás, normalmente, nas decisões inscritas no seu próprio tempo.
A eternidade possível
Ficar para a História… que é um juiz sonolento. Que acorda sempre tarde. E que só julga pela noite adentro, quando a generalidade dos contemporâneos, dormindo o sono dos justos, já rendeu a alma ao Criador, em sentido próprio ou figurado.
François Mitterrand decidia para a História. Pensava-se adiantado em relação ao seu próprio tempo. Mas, numa negação curiosa de tal progressismo, lia avidamente biografias de Luís XIV e doutros mestres da grandeza monárquica, tentando imitar, do inimigo Charles De Gaulle, a figura ambígua do Presidente-Rei, por ele tão bem encarnada.
Era a grandeza francesa. A grandeza do General. E portanto a de François, o socialista da ruptura republicana mas afinal… o sucessor monárquico na continuidade!
As sereias do PODER são como aves canoras. E cantam fortíssimo!
******
O outro lado da História? A pessoa cujo falecimento recente motivou esta crónica, dizia tranquilamente, antes de fechar os olhos para sempre, que não receava a morte, porque um Deus bom a acolheria.
Mistérios pois desse diálogo único entre cada um de nós e o absoluto.
Quem tem o direito de julgar antecipadamente? Quem?
Carlos Frota
Universidade de São José