O Nosso Tempo

As primaveras adiadas

Os verões que parecem invernos e vice-versa? As cidades transformadas, por súbitas e catastróficas inundações, em outras tantas Venezas sem gôndolas?

… não, não vou referir-me às alterações climáticas, o termómetro e o barómetro aqui são outros. Os nevões têm, neste contexto, natureza diversa; e os grandes calores provocam outro género de incêndios. Os da revolta, os da recusa da indiferença.

E, especialmente neste tempo de Quaresma que nos impele a uma interioridade mais meditada, mais profunda, é preciso recusar a indiferença, para que a alma não faleça. Assim o sente, por exemplo, a Igreja Católica no Congo que vai somando os seus mártires. Como o padre Jean-Paul Kakule Kyalembera, morto em Fevereiro último. Desde igrejas vandalizadas à perseguição de cristãos, só por quererem ter voz, como cidadãos, tudo é permitido no reino de Kabila. Aliás, a República Democrática do Congo é um exemplo clássico do país riquíssimo, dotado de abundantes recursos naturais, e a braços com a maldição, a tragédia imensa, para o seu povo, de ser isso mesmo – um país muito rico.

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Quem se dê conta, só agora, de que o nosso mundo é cheio de contradições, vive por certo numa redoma ou, por distracção, está atrasado na análise…

Poucos de nós, adultos, teremos ilusões sobre o estado do planeta. Mas sempre foi assim! – dir-me-ão as almas caridosas que, mais frias ou objectivas, tentam relativizar a minha emoção.

Mas neste século onde há, como nunca houve, uma consciência generalizada do que é realmente a aldeia global (para repetir a imagem gasta, mas sempre correcta) as notícias que nos chegam de todo o lado são o testemunho permanente de que a terra, a nossa casa comum, tem muitos quartos não só desarrumados, mas em estado caótico de desarrumação.

Oceanos transformados em depósitos de lixo, cidades poluídas onde respirar é perigoso, violência absurda na competição entre os diferentes nomes de Deus, chacinas indescritíveis de crianças e velhos, só para se içarem bandeiras de poder e glória (mas que glória!) na terra dos outros.

Na altura em que escrevo este texto para O CLARIM, tenho presente no meu espírito o martírio da população no enclave “rebelde” de Guta Oriental, perto de Damasco. Sujeitando a população a bombardeamentos massivos, independentemente da presença até de agentes da ajuda humanitária internacional, a lógica da guerra é implacável.

Assad e os aliados querem acabar, o mais depressa possível, com a presença de combatentes anti-governamentais na vizinhança da capital. A vitória militar tem que ser completa, para não haver nada a negociar. Os mortos estão sempre ausentes das negociações.

 

Dinheiro que não é nosso…

Dizia Jack Ma em Davos, há algum tempo atrás, que ser rico não tem nada de reprovável, se fruto de um trabalho meritório, como foi claramente o seu caso. Nem condenável é ser muito rico, nas mesmas condições. Nem mesmo ser multi-milionário. Mas, acrescentou sabiamente o fundador da Alibaba, a partir de um certo limite o dinheiro já não pertence a quem o ganhou – é da comunidade.

E aqui é que está o ponto. Não interessa muito o limite do que é ou não aceitável, eticamente, possuir-se, mas a noção de que em determinada altura do processo uma fronteira se ergue e o que falta aos outros grita, deve gritar dentro de nós.

Porque é tão absurda a posse de milhões e de milhões, indiferentes já ao mais exigente, ao mais extravagante estilo de vida – concluo eu – que não olhar para as carências estruturais de comunidades que nos rodeiam não é só indiferença, é crime. Pelo menos crime moral, se me é permitido abandonar a falácia das categorias jurídicas.

Vem isto a propósito da recente publicação pela revista Forbes da sua famosa lista dos mais ricos.

Jeff Bezos (Amazon), Bill Gates, Warren Buffett, Bernard Arnault e Família, Mark Zuckenberg (Facebook), Amancio Ortega, Catlos Slim, Charles Koch, etc., etc., etc. a lista não é muito longa, e o acréscimo de valor global na fortuna dos mais ricos subiu dezoito por cento desde o ano passado.

Repito a ideia de Jack Ma e exprimo-a nos meus próprios termos: quando se é absurdamente rico, a uma certa altura do processo, o dinheiro passa a ser, eticamente, socialmente, da comunidade. Não por qualquer intervenção de justiceiros privados, mas por imperativo ético.

E se bem se sabe que os Governos tentam essa redistribuição pelos impostos, tal não tem evitado nem o escândalo social dos absurdamente ricos, nem o escândalo social paralelo dos absurdamente pobres.

Mas… e a filantropia nisto tudo? Isto é, a capacidade de ajudar os outros, sendo realmente consequente no prosseguimento de causas sociais, como parece ser o caso com a Fundação Linda e Bill Gates e algumas outras?

Há gente, entre os mais afortunados, que se fixam na missão de ajudar. Alguns mais cépticos vêem na filantropia, porém, mera habilidade fiscal, o modo legalmente aceitável para pagar menos impostos.

Isto é simplificar as coisas, naturalmente. Mas mesmo a filantropia mais generosa fica sempre aquém das necessidades a que é suposto fazer face.

 

Um homem de bem

Só há pouco tempo tomei consciência, numa América Latina tão desigual e por vezes tão injusta, da existência de um homem excepcional que marcou a política do Uruguai, como marcou e marca a vida de quem com ele priva.

Refiro-me ao ex-Presidente José Mujica, ex-guerrilheiro tupamaro, ex-prisioneiro, um homem sábio por causa dos seus erros.

Em funções até 2015, e considerado o mais pobre dos Presidentes, prescindiu do palácio presidencial para continuar a viver na sua simples casa de um só quarto, deslocou-se como sempre no seu velho Volkswagen carocha e recusou noventa por cento do salário presidencial porque… não precisava deles para viver.

O Presidente-sábio tem frases extraordinárias que são outros tantos ensinamentos de vida. Diz ele: «Tive que aguentar catorze anos na prisão. Nas noites que me davam um colchão, sentia-me confortável, aprendi que se não se pode ser feliz com poucas coisas, não se vai ser feliz com muitas coisas. A solidão da prisão fez-me valorizar muitas coisas».

E perante a atenção mediática mundial que a sua pobreza voluntária suscitou, disse: «Por que se interessam tanto pelo modo como vivo? Que vivo com pouco, em uma casa simples, que ando num carrinho velho, essas são as notícias? Então este mundo está louco, porque o normal surpreende. Eu vivo como vive a maior parte de meu povo, na política o normal teria que ser o meu modo de vida».

Quando Mujica visitou no Vaticano o Papa Francisco os dois abraçaram-se de forma especial. Por que seria?

Carlos Frota 

Universidade de São José

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