A Senhora, o peregrino e as duas crianças
Mais de um milhão de pessoas, vindas de todos os continentes, de espontânea e livre vontade, reuniram-se durante algumas horas no recinto apertado do Santuário de Fátima, para um encontro muito especial.
E isto, no contexto de um mundo que não só não crê, como desvaloriza e ridiculariza quem crê. Um mundo que promete outras formas de “realização” do Homem, erigidas em eternidades alternativas; e noutros paraísos, onde o materialismo predomina e o culto do indivíduo prevalece, através das vaidades, da soberba, do dinheiro, da busca obcecante do protagonismo, através da fama e da posição social.
Milhares de peregrinos ali se concentraram. Ninguém os obrigou a fazer a viagem, muitos deslocaram-se a pé durante dias, das suas terras de origem, com sacrifício físico e até económico – e para quê? Para algumas horas, “apenas”, de intensa comunhão com o Invisível. Na esperança de voltarem aos seus lares com a satisfação íntima de terem carregado as baterias do coração com uma energia especial que tentarão não se apague tão cedo.
Superstição! – terão dito muitos, os de espírito “superior”, aqueles cuja racionalidade só consente afinal vislumbrar o óbvio.
Fé! – proclamaram, com a sua presença, todos os que ali estavam, na afirmação de um dos mais belos e expressivos testemunhos da ligação do ser humano ao seu Criador.
O doutor Bagão Félix, conhecido dos portugueses pelo seu testemunho cívico e religioso de há décadas e um dos convidados da RTP para comentar a peregrinação do Papa Francisco a Fátima, sublinharia – e bem – o significado profundo daquele acto de liberdade espontânea, e sem restrições, que moveu milhares e milhares de pessoas a percorrerem de novo os caminhos de Fátima.
E o padre António Vaz Pinto, igualmente conhecido pelo seu perfil como interlocutor da juventude e como comunicador, recordaria o contexto histórico, português e mundial, em que as Aparições ocorreram, e em que o culto mariano de Fátima se foi consolidando, para sublinhar o quanto a adversidade de cada época, no decurso do século agora completado, não enfraqueceu mas, pelo contrário, só ampliou a religiosidade muito particular daquele lugar.
Da laicidade agressiva da Primeira República à hostilização sub-reptícia da espiritualidade dos tempos mais recentes, Fátima tudo tem vivido e tudo tem superado.
O milagre também é esse e não é pequeno.
FÁTIMA COMO RESPOSTA
A razão parece-me óbvia: perante as necessidades espirituais de cada época, de cada geração, de cada pessoa, Fátima foi sendo continuamente uma Resposta. Fátima como, aliás, os outros santuários marianos espalhados pelo mundo.
E isso, apesar dos regimes políticos que atravessaram o século, e sobretudo, mais recentemente, com a revolução tecnológica, a invasão de tudo e todos por uma cultura laica insidiosa que tenta conquistar e dominar todos os espaços.
Desde o espaço mais óbvio, o da praça pública, com os media, a publicidade, o apelo à distracção permanente, ao consumismo e à futilidade, até ao mais íntimo do espírito dos mais vulneráveis – e somos quase todos nós – a quem o mundo despoticamente se impõe, no dia a dia real das nossas vidas.
A SENHORA DOS EVANGELHOS
Numa das suas alocuções, o Papa Francisco recordaria, na Cova da Iria, a necessidade de cada crente passar da visão de Maria como a Senhora de todas as aflições, ao reencontro de Maria como a que disse o SIM inicial sem condições, quando o Anjo a visitou, e depois prolongou, aos pés da Cruz, perante seu Filho morto, o sentido total da sua dádiva.
Com este acto supremo de renúncia – nada lhe pertenceu nunca, nem o Filho que gerou nas suas entranhas – Maria oferece, com o seu exemplo, uma atitude de desapego perante o mundo.
Exemplo que está em frontal contradição com o nosso natural desejo, não só de dominar o nosso destino, como se fôssemos os criadores de nós próprios, como de possuir os bens terrenos, convencidos de que os levaremos para a Eternidade que nos espera, qualquer que seja a antevisão que dela tenhamos.
Para além pois da ternura que espalha com generosidade a Mãe que é, que continua a ser, Nossa Senhora oferece-nos como que um “código de conduta” para a nossa atitude quotidiana perante a vida, que exemplificou com a sua existência terrena. E é aqui naturalmente que a Mensagem Mariana transcende a particularidade dos nossos afectos e devoções individuais, para se transformar num poderoso Recado para o mundo.
PARA ALÉM DO MOMENTO
O Papa Francisco foi a Fátima e vinte e três horas depois regressou a Roma. O que ficou da sua passagem breve por terra portuguesa foi, como sempre, o testemunho tocante da sua modéstia e da sua autenticidade.
Venera-se o Papa Francisco – particularmente ele, porque é ele que partilha connosco este Agora da sua e das nossas vidas – porque, em cada momento, o sentimos esvaziado de si próprio.
Francisco, sentimo-lo, envia-nos permanentemente a mensagem de que nada traz e nada transmite que seja seu, mas de Quem o enviou.
E como sempre acontece, cada vez que presenciamos a sua modéstia, mais ele se engrandece perante os nossos olhos. Porque é este tipo de Pastor que o rebanho precisa, esse rebanho bíblico de ovelhas livres e pensantes e não um qualquer exército de autómatos em que uma fé cega e ignorante nos tivesse transformado.
PORTUGAL, PORTUGAL
Como não olhar com ternura, nesta ocasião, para a nossa terra, a bonita terra portuguesa, palco dos acontecimentos extraordinários de 1917 e que a devoção de milhões de pessoas, no decurso do século, converteu continuamente num dos altares do mundo?
O Presidente da República, o Governo, os ministros, o Parlamento, todo ou quase todo o Portugal oficial se mobilizou para estar à altura do grande acontecimento.
Mas o verdadeiro lugar da Festa teve lugar dentro do coração de cada um de nós, peregrinos físicos ou espirituais da comemoração do Centenário das Aparições.
Duas novas velas se acenderam em Fátima para quem quiser acender nelas a sua própria luz: Santa Jacinta e São Francisco Marto.
Carlos Frota
Universidade de São José