O Nosso Tempo

E agora, senhores?

A galeria de retratos famosos do nosso mundo – tão improvável quanto real – foi enriquecida pois, há dias, com a figura inconfundível do novo Presidente-eleito dos Estados Unidos. Personagem inconfundível no estilo, no verbo, nos gestos. Em tudo.

Se a sua vida profissional (e mencionarei apenas essa) não passou despercebida até há algum tempo atrás, nos últimos meses a Imprensa de todo o mundo ecoou (campanha eleitoral e personagem oblige) os seus excessos de linguagem, as suas invectivas, o seu ataque feroz à classe política e aos media, formando vagas cada vez mais alterosas que culminaram no tsunami da sua eleição.

– O que fizemos nós ontem?, ter-se-ão perguntado muitos americanos na manhã seguinte ao voto.

– Pois elegemos um novo Presidente!, terão dito os menos esquecidos.

Numa reflexão liminar, diga-se que tudo confirma a natureza controversa da escolha, como o prova o seu reflexo em milhões de pessoas em todo o mundo, incluindo numerosos líderes políticos de países importantes, que das mais diferentes formas exprimiram preocupação.

Também se poderá dizer que quem é crítico da democracia representativa tem na escolha de Trump uma excelente razão para afirmar que o sistema político, tão incensado no Ocidente, não produziu seguramente o melhor que podia.

Mais: ao arrepio da própria democracia que diz defender, é a hipótese de o candidato mais votado poder não ser eleito, pela disparidade entre voto popular (individual) e a sua tradução nos votos do colégio eleitoral. Como sucedeu agora: Hillary Clinton foi mais votada, mas quem ganhou foi o seu adversário. Estranho, pelo menos…

Mas toda a campanha eleitoral constituiu um exemplo a não seguir, pela sordidez das acusações e pela baixeza dos argumentos de um lado e de outro.

 

Que visão do futuro?

Pois é esse Presidente, tão improvável há uns tempos atrás e agora inevitável que oitenta milhões de católicos americanos verão em Janeiro na Casa Branca, como o verá o resto dos seus concidadãos. Para fazer o quê? Para dar forma a que visão da América? Para ajudar a construir que futuro para o resto do mundo? São essas as perguntas que todos formulam.

Quanto às respostas, quem o elegeu antecipa já o paraíso ou o el-dourado que é a sua versão terrena: mais empregos, menos impostos, mais segurança nas ruas, menos estrangeiros de uma certa religião, menos vizinhos do Sul, o tal muro que os outros vão pagar etc. etc.

Quem não votou nele antecipa o pior: maior desigualdade económica, maior protecção dos grandes grupos económicos, o aumento da discriminação contra as minorias, etc. etc.

E os líderes internacionais esperam e receiam uma América demasiado interventora, por um lado; e ou isolacionista, por outro, pondo em causa alianças, criando vazios e renegando compromissos assumidos em laboriosas negociações, como são, ao que parece, os casos do Acordo de Paris sobre Alterações Climáticas e a acordo com o Irão sobre a não proliferação nuclear.

 

Retrato de um homem e da sua sombra

Mas quem é Trump, segundo a generalidade dos seus biógrafos? É um obcecado pelo reconhecimento social, e este foi obtido na prossecução da riqueza como fim em si.

Ser rico, muito rico, insultuosamente rico, foi para o agora Presidente-eleito a forma que escolheu para se fazer respeitar, esquecido de que o dinheiro pode comprar quase tudo, e desde logo a subjugação dos outros, por necessidade ou mero interesse – mas nunca o verdadeiro respeito.

Mas a riqueza não lhe chegava, queria mais, queria o máximo, e esse máximo obteve-o agora. A sua aspiração suprema foi agora realizada, ao obter o poder supremo no país mais poderoso do mundo… veremos até quando. Mas como o mundo é feito de pessoas reais e situações concretas, e não de pessoas ideais para situações diferentes, aí o teremos por quatro anos, no mínimo.

O que se pode esperar da economia segundo Trump? Da solidariedade social segundo Trump? Mais geralmente, do tratamento dos ricos e dos pobres segundo Trump? Da paz e da segurança internacionais segundo Trump? Com as primeiras interrogações preocupam-se principalmente os americanos. Com as últimas preocupa-se o mundo todo.

 

O Papa e o Presidente

Os pontífices, como muitos responsáveis religiosos, políticos, económicos e sociais, mantêm como hábito a escrita regular de diários que os orientam nas suas reflexões e nas suas decisões.

Não sei se o Papa Francisco tem realmente esse hábito, mas presumo que sim. E por isso imagino a seguinte entrada, no dia 9 de Novembro de 2016: “Hoje foi eleito Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos. Os desígnios de Deus são insondáveis. Chamar urgentemente o Secretário de Estado. Consultar a Conferência Episcopal”.

Perdoe-se-me a ironia, mas esta minha tentativa de ficção sobre o real (não faltam romances sobre a via interna do Vaticano) só pretende sublinhar a seriedade com que se terá seguido em Roma a ascensão ao poder do mais inverosímil dos personagens e do mais incómodo dos interlocutores.

Durante a campanha presidencial nos Estados Unidos, recordo a alusão do Santo Padre à necessidade de se construírem pontes e não muros entre povos, culturas, religiões. E isso foi entendido como uma reacção à ideia do muro na fronteira com o México, ideia mais do que controversa do candidato republicano.

Estava assim estabelecida, simbolicamente, a oposição entre duas visões do mundo, a do Papa (e por isso a da Igreja) e a do então candidato e agora Presidente-eleito.

Pois serão estas duas personalidades tão diferentes que, mais tarde ou mais cedo, vão encontrar-se e dialogar, no respeito pelas suas áreas de intervenção específicas.

Estima-se em pouco menos de oitenta milhões o número de católicos americanos, o que significa que um quarto da população dos Estados Unidos se identifica com a Sé de Pedro.

Os Estados Unidos, com um quarto da população professando o Catolicismo, são o quarto país do mundo com maior número de católicos, depois do Brasil, do México e das Filipinas.

E permito-me recordar o profundo impacto que teve a visita do Santo Padre à América em Setembro de 2015.

 

A política como (des)serviço?

Quando o que motiva alguém a procurar o poder político é a pura satisfação pelo sucesso absoluto, corre o risco de mais cedo ainda vir a ser julgado pelos resultados, por quem nele votou, por quem nele depositou esperança.

Todo o percurso de Donald Trump está nos antípodas do que o Papa Francisco vem advogando: o poder como serviço. A atenção aos mais necessitados. A simplicidade como estilo de vida.

Mas… e as suas políticas? Porque é por elas que será julgado. A comunidade católica americana, dividida aliás no sentido do voto, esperará para ver…

Carlos Frota 

Universidade de São José

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