O nosso tempo

O embaraço da lei

Numa viagem de autocarro que fiz, no interior de Portugal, neste último Verão, tive como companheiros de ocasião, por duas curtas horas, um simpático octogenário e sua mulher, ambos emigrantes no Brasil há quase quatro décadas.

Homem de muitos ofícios e habituado por isso aos múltiplos desafios da vida, o meu simpático interlocutor não se esquivou ao desafio de uma animada conversa. (Provoco-as sempre, para ouvir aventuras das vidas deste nosso povo corajoso, ainda e como sempre, pela força da necessidade, gente das sete partidas do mundo).

Pois em duas penadas e sob minha instigação, o meu novo amigo “brasileiro” contou-me, em cinco minutos, a história política do último meio século dessas terras de Vera Cruz, convertidas há muito em sua pátria de adopção.

E, entre adjectivos mais ou menos coloridos, ia cognominando – de forma livre e não inibida – Juscelino Kubitshek e seus sucessores, com os nomes que melhor se lhes adaptavam, sob o prisma da honestidade do homem de bem que não via razão por que podem ter os políticos (neste caso brasileiros) um código ético diferente do comum dos mortais.

E, comentando os últimos acontecimentos políticos em Brasília e que culminariam com o afastamento político de Dilma, arrasou a “presidenta”, o seu sucessor e a respectiva clientela, dispensando-me eu aqui de reproduzir as palavras exactas, e não isentas de humor que só o Português falado no Brasil pode suscitar.

Não o acompanhei na crítica, nem assumi a defesa dos acusados, porque nenhum deles era o meu propósito. Mas sim ouvir, tentando captar a sensibilidade de quem vivia as situações de dentro – e avaliar depois.

A certa altura, e a propósito de segurança nas ruas e do combate à pequena e grande delinquência urbana, mencionou «essa coisa dos Direitos Humanos», cujo respeito o Governo impôs no comportamento dos militares e da polícia; e que os terá tolhido na eficácia da respectiva acção, de prevenção de assaltos, a lojas de comércios ou a pessoas individuais.

E perorou durante longo tempo o meu companheiro de viagem, sobre a tal coisa de se atar as mãos às forças da ordem, preferindo-se antes a protecção dos direitos de quem é socialmente nocivo.

 

Os meios de um combate sem tréguas

Estes comentários vêm-me à mente quando se multiplicam as descrições do estilo do novo Presidente filipino na luta contra o flagelo da droga no seu país.

E a crescente crítica internacional sobre tal actuação, bem como a forma virulenta como o próprio reage às acusações de alguma liberdade com que trata a lei e a justiça.

Invocando a necessidade de eficácia a todo o transe, o Presidente sublinha a premência de erradicar da sociedade cancros como o da droga, cujos terríveis efeitos bem conhecemos.

Nas nossas sociedades modernas e cada vez mais abertas ao mundo, pelas múltiplas dimensões de uma globalização que os Governos em larga medida não controlam – a globalização do comércio da droga ilustra a questão – é natural que se intensifique a tensão e o debate sobre a relação entre o direito e a segurança; e a margem de actuação consentida pelos Governos às forças policiais, protectoras dos cidadãos.

Tal tensão é compreensível e tal debate é necessário. Mas mal de nós se, excepto nas situações de conflito maior, a eficácia é critério exclusivo.

Em França, a título de exemplo (e embora a analogia não surja assim tão óbvia) o estado de emergência foi decretado no quadro da luta contra o terrorismo e com as limitações e salvaguardas constitucionais que foram amplamente divulgadas.

O Presidente Duterte tem toda a legitimidade de definir uma linha de conduta que julgue a mais adequada, para a natureza do combate para que foi eleito.

Mas caberá sempre ao povo filipino julgar da bondade de tal actuação, a proporção dos meios e dos fins, e avaliar a actuação do seu Presidente, pelos meios normais do respectivo sistema constitucional e político.

Leio que o prosseguimento de tal comportamento político do Presidente, apodado de populista por muitos, pode alienar sectores importantes da sociedade filipina e nomeadamente uma sua instituição-chave que é a Igreja Católica.

A ver vamos…

 

Direitos, refugiados e imigrantes

A mesma tensão entre direito e a realidade social envolvente, num quadro que está a mudar perante os nossos olhos, é óbvia na Europa de hoje.

Tome-se como exemplo o conceito social de cidadania e o direito equivalente à nacionalidade. A radicalização de número não negligenciável de jovens muçulmanos, nascidos na Europa, levou em França e na Alemanha a questionar-se a dupla nacionalidade desses indivíduos e a perda definitiva da nacionalidade do país europeu em causa.

Sabe-se que em França o Presidente recuou, depois da demissão da ministra da Justiça e da reprovação da ala esquerda do PS que isolou Hollande. Mas na Alemanha a questão não está encerrada.

O que pensar dos termos do debate e da oportunidade do mesmo? Comecemos pelo último aspecto: é óbvio que este é um problema que surge no actual contexto securitário, com o ISIS recrudescendo as suas tentativas de ataques espectaculares a comunidades com cada vez mais fortes sentimentos de vulnerabilidade.

Quanto ao conteúdo mesmo da discussão, é entendimento pacífico que o vínculo de nacionalidade pressupõe a identificação mínima da pessoa ao país em causa, mesmo que, por razões culturais, sinta tal ligação de forma diversa.

Um católico polaco e um judeu francês, um muçulmano alemão ou um budista escocês, verão sempre os respectivos países à luz do quadro civilizacional e familiar que lhes serviu primeiro de berço. Isto é normal.

O que não é normal é que ofereçam a sua fidelidade e transformem o seu compromisso de cidadania numa militância radical que visa destruir o Estado, mesmo onde nasceram e consideram o seu… a pretexto de uma ordem social ou moral mais justa que querem ajudar a construir. Recorrendo nomeadamente à violência.

Estatutos como o direito de asilo sofrem hoje igualmente uma certa erosão, porque se receia a sua manipulação por forças radicais, colocando os seus peões em sociedades abertas.

Carlos Frota 

Universidade de São José

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